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Foi para a língua portuguesa que Fernando Pessoa escreveu ‘Mensagem’, único livro em português de sua autoria publicado em vida

28jun2022 | Edição #59

Das quatro obras que Fernando Pessoa publicou em vida, três — plaquetas, redigidas e editadas pelo próprio autor — eram em inglês . A outra era Mensagem, coletânea escrita e publicada em português. Por vinte anos, Mensagem, com poemas escritos entre 1913 e 1934, foi uma das variantes de Portugal, título afinal recusado pouco antes de começar a ser vendido, em 1º de dezembro de 1934 — data fixada em relação à independência portuguesa do domínio espanhol (1580-1640) após a morte de D. Sebastião. Segundo o próprio Pessoa, nesses poemas “se resume a história passada, e a promessa da história futura, de Portugal”.


Mensagem, de Fernando Pessoa

A alteração do título deu-se por razão “patriótica e publicitária”: para o amigo Da Cunha Dias, “o nome da nossa pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a sua maior Dinastia”, que indagava ao poeta: “Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com ‘portugalize os seus pés?’”. Fundada em 1897, A Portugal era a fábrica de calçados mais antiga do país, e o luxuoso Aviz Hotel (inaugurado em 1933) portava o nome da principal dinastia portuguesa. Na introdução à edição brasileira de Mensagem, lançada pela Todavia e da qual é organizador, Jerónimo Pizarro propõe que a troca de título pode ter razão anagramática, ao “cifrar versos de Virgílio (Eneida): ‘mens agitat molem’ (o espírito move a matéria) e ainda outras frases latinas, como ‘mens mega’ (alma imensa) e ‘mea gens’ (a minha raça)”.

O livro não deixa de ser “mensagem
numa garrafa” para os pósteros, um salve-se quem souber. Mensagem é um cadinho de pérolas da poesia de língua portuguesa por ser a única coleção de poemas em português organizada e publicada pelo poeta essencialmente diverso, disperso e desorganizado — sua refração em múltiplos heterônimos é apenas um dos reflexos da personalidade alheia a qualquer forma de completude. Assim, para além do valor intrínseco dos poemas, há o que poderia significar para a compreensão da obra um gesto de autoconsciência artística.

Embora o título possa aludir a equívocos, Mensagem é obra de um poeta, e não de um carteiro. Alguns dos melhores poemas de Pessoa estão no livro — como “Os Colombos”:

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

Muitos versos de Mensagem estão entre os mais re/conhecidos, como “O mito é o nada que é tudo” (“Ulisses”), “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena” (“Mar português”), “Não sei a hora, mas sei que há a hora” (“A última nau”), “Se ainda há vida ainda não é finda” (“Prece”) e “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro” (“Nevoeiro”).

Outros versos de Mensagem são típicos do Pessoa dos heterônimos, que são hits e moeda corrente nas citações poéticas, apesar da assombração das figuras heráldicas. Investido da função laudatória dos feitos de Portugal, mandando brasa em brasões mas “abundantemente embebido em simbolismo templário e rosicruciano” (segundo o próprio poeta), Pessoa evita que as loas patrióticas afoguem as naus da poesia. Avista-se o risco de momentos maçantes, que não empanam, porém, o lance fulgurante de textos concisos e lapidares — padrões leem-se em versos de “Padrão”: “o esforço é grande e o homem é pequeno”, “a alma é divina e a obra é imperfeita”, “o porto sempre por achar”. Em “Horizonte”, vê-se o verso-divisa à la Paul Klee: “O sonho é ver as formas invisíveis”.

Convicções ideológicas

Mensagem destina-se à época das gloriosas navegações marítimas e à história de Portugal antes e depois da Batalha de Alcácer-Quibir. O mofo do ufanismo não sufoca o lavor artístico. Lançado quase um ano exato antes da morte do autor (30 de novembro de 1935), o livro-barômetro espelha o oximoro político de Pessoa. Se este declamava que sua pátria era a língua portuguesa, Mensagem desfralda o apego a uma noção de nação, sem ilusões: “escrevo meu livro à beira-mágoa” (poema sem título). No estudo Pessoa, Portugal e o futuro (2014), Onésimo Teotónio Almeida trata das “convicções ideológicas” como fundamentos para a compreensão da “mundividência pessoana”.

Mensagem ganhou o Prêmio de Poesia Antero de Quental (nem “um prêmio de consolação” nem “um prêmio de segunda categoria”, adverte Pizarro), em concurso do Secretariado de Propaganda Nacional (spn) do regime de Salazar, com o qual o poeta manteve relações ambíguas e conflituosas. Vítima da censura, escreveu em 1935 a anti-heroica “Elegia na sombra” (“Lenta, a raça esmorece, e a alegria/ É como uma memória de outrem. Passa/ Um vento frio na nossa nostalgia/ E a nostalgia touca a desgraça.”). Diretor de Deus e o diabo na terra do sol (1964), Glauber Rocha teria se enfurecido ao saber que seu herói Antônio Conselheiro foi banido de um esboço de Mensagem em 1928.

O livro ganhou um prêmio de poesia do regime de Salazar, com o qual o poeta manteve relações ambíguas e conflituosas

Em nota introdutória à sétima edição (Ática, 1959), David Mourão-Ferreira escreveu: 

“Verdadeira imagem de Portugal, com a carne da História sublimada na auréola do mito, a Mensagem constitui, nos tempos modernos, uma das raras possibilidades de sobrevivência da epopeia em verso. […] A obra foi, todavia, ideada em conjunto, e as três partes em que ela se divide correspondem a um desenho assaz preciso: na primeira — Brasão —, ficam interpretados os seculares motivos dos campos, dos castelos, das quinas, da coroa e do timbre; na segunda — Mar Português —, apresenta-nos ele um políptico do período áureo das navegações portuguesas; por fim, na terceira — O Encoberto —, sabiamente entrelaça os temas do auge e do declínio, da derrota e da esperança”.

É a hora!

A exortação do último verso (“É a hora!”) do último poema (“Nevoeiro”) de Mensagem pode ser lida em visada extemporânea, válida e atual para qualquer momento de crise, como o que ora vivemos. Seria o caso de pensar por que no fim da vida (mesmo que ele não soubesse que morreria dali a um ano, apesar dos avisos de seu médico contra as birutas da birita) Pessoa resolveu publicar justamente esses poemas coligidos com tal teor nacionalista-espiritualista. Se Mensagem não é obra de correio, seria “aquela” thread de tuítes, um dos trending topics mais transados de como Pessoa talvez quisesse organizar parte de sua obra, posto que a maior parte dela ficou inacabada e inacabável?

O livro atualiza o retorno do recalcado mito de D. Sebastião com o poeta assumindo-se profeta de uma ordem sebastianista. Há uma necessidade de notas explicativas a Mensagem, diante da abundância de referências históricas a façanhas e figuras tópicas d’antanho, que evidentemente desnorteiam um leitor de hoje, abandonando-o ao desabono da ignorância e obrigando-o a recorrer ao oráculo Google. Em seu elucidativo posfácio, a professora Ida Alves menciona dois trabalhos brasileiros de 2014 relevantes para a compreensão do livro: a edição de Mensagem organizada por Cleonice Berardinelli, com notas e estudos, e Mensagem, de Pessoa: labirintos de um poema, de Clécio Quesado.

Pizarro afirma que Mensagem difere de Os lusíadas por “não ser assumido pela voz de um vate, mas por uma voz coral”, anunciando “o advento de um ‘super-’ ou ‘supra-Camões’ — termos criados por Pessoa em 1912”. E sugere: “Navegue-se neste livro como se se navegasse num navio, com uma ‘suspensão voluntária da descrença’ que permita aceitar como verdadeiras as figuras evocadas e ainda esse mito, tão bem definido por Pessoa, que ‘é o nada que é tudo’. Navegue-se neste livro não tanto à procura da verdade histórica como em busca de uma verdade poética, isto é, sem esquecer que é a obra de um poeta e de um poeta que tentou manter viva a crença numa grandeza vindoura, embora também conhecesse, e bem, o desengano e o desassossego”.

Grafia antiquada

Ao contrário do que dizem as duas notas introdutórias da edição portuguesa de 1979, com argumentos supostamente encampados pela edição brasileira da Todavia, talvez não seja o caso de ignorar a questão da ortografia original com que Pessoa escreveu Mensagem, ou, ao menos, talvez o seja de ponderar e sopesar. O erudito Pizarro, cujas criteriosas ecdótica e edição crítica com notas (Tinta-da-China, 2020) foram dispensadas pela Todavia, é um rigoroso defensor da conservação da grafia de origem. Mensagem é um poemário cujo tema chama uma língua arcaica e arcaizante. Portanto, não seria mera querela de antigos e modernos. Afinal, a pátria de Pessoa era a língua.

Em sua nota introdutória à sétima edição, Mourão-Ferreira explica: “Pela primeira vez se publica uma edição da Mensagem especialmente dedicada ao povo e à juventude de Portugal. Para isso, actualizou-se-lhe a ortografia, de modo a que não se erguessem, entre a obra e o leitor, supérfluos ou irritantes obstáculos. Neste livro […], Fernando Pessoa optara deliberadamente por uma grafia já então antiquada, arcaica na acentuação, exuberante de consoantes dobradas, eriçada de agresssivos yy e de outras letras constituindo um verdadeiro peso morto. Fê-lo com toda a consciência, e por motivos que lhe pareciam válidos, atento sobretudo ao que neste livro se prende ao passado, e de passado se nutre e se reclama. Toda a obra de Fernando Pessoa é, porém, comparável àquele deus bifronte (a que ele próprio algures se referiu), com uma face que olha o passado e outra que olha para o futuro”.

Em sua nota introdutória à 13ª edição (Ática, 1979), Mourão-Ferreira depõe que, com a atualização da ortografia, Mensagem foi adotado oficialmente para o ensino. “Compreende-se porquê: uma ortografia arcaizante, e em muitos casos arbitrária, apenas contribuiria para criar as maiores confusões no espírito de jovens em idade escolar, ou até de menos jovens semelhantemente desorientáveis.” E ainda argumentou que, apesar de existirem  “vozes discordantes”, animadas pelo “mais inesperado ideal de conservadorismo… ortográfico”, sob a justificativa de ser um “atentado à vontade” do autor, o próprio Pessoa “avalizou todas as possíveis, sob esse aspecto, actualizações dos seus escritos”. 

Se o objetivo seria a “popularização” (cauterizo a cautela do termo com o duplo pleonasmo das aspas e do itálico) ou o apelo de atender estudantes, uma aproximação mais didática à obra foi feita pelo artista baiano (radicado em Brasília) André Luiz Oliveira. Diretor dos filmes Meteorango Kid: herói intergalático (1969), Louco por cinema (1995) e O exu iluminado (2011), Oliveira lançou em 1986 o lp Mensagem, com doze músicas compostas por ele sobre os poemas de Pessoa. Em 2003, veio um CD com mais treze músicas. E, em 2015, o terceiro disco, com dezoito canções, então acondicionado numa caixa de madeira, com os outros dois CDs, dois DVDs, um caderno de imagens e o livro.

‘Mensagem’ tem um tema que chama uma língua arcaizante. Portanto, não seria mera querela de antigos e modernos 

O baú de 2015 traz os 44 poemas de Mensagem, musicados por Oliveira em diversos gêneros, nas vozes de intérpretes como Elizeth Cardoso, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Fagner, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Ná Ozzetti, Ney Matogrosso, entre outros artistas brasileiros, portugueses e cabo-verdianos.

D. Sebastião

Nas polêmicas performances da canção “É proibido proibir”, em 1968, Caetano Veloso declamava “D. Sebastião”, poema de Mensagem:

Esperai! Cai no areal e na hora adversa 
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura,
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Em depoimento num dos DVDs do baú Mensagem, Veloso, que compôs “Os argonautas” (1969; em que cita “navegar é preciso, viver não é preciso”) e “Língua” (1984; que recicla a famosa frase “minha pátria é minha língua”) disse: “Fernando Pessoa é a justificativa da existência da língua portuguesa. Foi para a língua portuguesa que ele escreveu Mensagem”. No poema “Dobrado o Assombro”, dedicado a Antônio Vieira, o “imperador da língua portuguesa”, Pessoa juntou-se a outro gênio da palavra, sob o signo de Walter Benjamin: “No imenso espaço seu de meditar,/ Constelado de forma e de visão”.

O especial Livros que falam a nossa língua tem o apoio de Portugal – País convidado da Bienal Internacional do Livro de São Paulo 2022

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.