Literatura brasileira,

O infiltrado

Após um hiato de dezesseis anos, Marçal Aquino volta à literatura com romance que passeia entre o policial e o erótico

20abr2021

O que pode oferecer a literatura, e só a literatura? O que a torna única entre as formas de arte ou de criação? Essas perguntas são antigas e já receberam respostas infindáveis, podem já ter se esgotado ou se tornado anódinas. Ainda assim, há épocas que insistem em voltar a postulá-las, e talvez seja o caso da nossa: tantas distrações nos tomam, tantas formas novas de entretenimento e ficcionalidade, que à literatura parece necessário se reafirmar, tentar riscar no solo instável o espaço exato que lhe cabe.

Para se diferenciar, o romance já se valeu de uma série de recursos peculiares: quis se tornar a linguagem própria da consciência, e logo do inconsciente; mergulhou na autorreflexão e se fez expressão de seu próprio fracasso. Só um longo et cetera daria conta de tentativas mais radicais. Há, no entanto, romances que se mantêm próximos de certa tradição fabular, de uma disposição de narrar ações e acontecimentos concretos. Romances cujas tramas se distinguem pouco, à primeira vista, daquelas dos filmes e das séries, dessas formas narrativas bem mais vistosas. E neles, surpreendentemente, a pergunta permanece viva: como alcançam o que só a literatura alcança, e o que nos dão ao insistir nessa escolha que pareceria insensata?

Pensei muito nessas questões ao ler Baixo esplendor, o novo livro de Marçal Aquino. Com ele, o autor retorna à casa do romance depois de dezesseis anos afastado, autoexilado no ofício de roteirista de filmes e séries. Seu exílio não parece ter sido sofrido ou estéril: como antes no romance, Marçal tem sido muito reconhecido como roteirista hábil e prolífico. Por que retorna à velha casa, então? Por sorte, esse é um autor que não costuma negligenciar respostas. Em suas próprias palavras, ditas em entrevista ao Estado de S. Paulo, porque “a escrita de um livro é o momento de liberdade máxima de que pode desfrutar um criador”. 

No romance, o autor pode escolher com imensa liberdade o que mostrar, pode magnificar algum detalhe e tratá-lo com profusão de palavras por vários parágrafos, mas pode também escolher o que é preferível ocultar. Ao longo do livro de Marçal, sabemos pouco de seu protagonista, ou ao menos daquilo que poderíamos chamar de sua vida real. Policial infiltrado numa quadrilha que se dedica ao roubo de cargas, desconhecemos quase tudo o que não seja estratégia da investigação — seu nome real, seu passado, seus velhos amores, suas amizades cotidianas, sua casa habitual. Desconhecemos até mesmo seu rosto: precisamos de dezenas de páginas para descobrir que é um homem bonito, e só o percebemos pela atração que exerce sobre as mulheres.

Esse recurso, a dose acurada de informações que o autor vai nos fornecendo com discernimento total, é fundamental para o efeito que pretende alcançar. O livro se apresenta, numa primeira impressão, como um romance policial, uma trama centrada na perseguição inteligente a um grupo de criminosos. O presente do homem infiltrado, porém, é tão vívido e palpável, tão oposto à palidez de seu passado, que nos domina por completo como leitores, e domina o próprio personagem. “Miguel”, eis o seu codinome, se disfarça tão bem entre os criminosos que começa a se confundir com seu disfarce — só Miguel é nomeado, só Miguel existe. Infiltra-se tão bem que talvez já não consiga sair, talvez veja borrados os limites arbitrários que separam as suas duas vidas, incapaz agora de decidir qual é a mais real. 

Não se trata de um romance psicológico; tudo aqui é demarcado por cenas e fatos construídos com vivacidade, tudo aqui demonstra a exuberância do narrar. Há um fato concreto que desequilibra a existência de Miguel: a aparição de Nádia, a irmã do homem que ele investiga, uma mulher que cativa não sua sensatez, mas seus sentidos. Vemos, então, o romance policial a derivar em outra direção, a se fazer história de amor ou mesmo romance erótico. Como seu protagonista, esse romance é um policial que se infiltra em outro subgênero literário, e que ali talvez se encontre consigo mesmo, ou atinja sua dose maior de verdade. 

Como seu protagonista, esse romance é um policial que se infiltra em outro subgênero literário

À diferença de um romance policial clássico, aqui não estamos diante de um mistério ou de um “caso”, de algum fato excepcional a exigir uma averiguação minuciosa. No crime que desponta no livro há pouco de estranho ou atípico, pouco que se distinga de uma criminalidade muito difundida. À medida que o foco do livro vai se desviando da morte para o amor, também sua proposta ganha outro matiz e outra profundidade. “Os fatos perderam o caráter de mistério ou de caso e ganharam realidade humana e social”: essas palavras de Juan José Saer sobre Raymond Chandler, um dos grandes da literatura noire, talvez se apliquem bem também a Marçal Aquino. 

Brutalidade

Aqui, em outro aspecto, a narrativa se mostra mais realista do que seria de se imaginar, ou mais aberta a uma incorporação do real. Estamos na década de 1970, numa fase brutal da ditadura militar. Na maior parte do tempo, esse é apenas um pano de fundo da obra, desimportante, arbitrário. Mas há momentos flagrantes em que isso se transforma, em que a brutalidade militar é referida e narrada com força acabrunhadora. A tortura desponta e aniquila as suas vítimas, as destrói por completo, física e animicamente. Aos nossos olhos, ou melhor, na oscilação de linguagem que o autor propõe, a violência oficial se revela muito mais destruidora do que o crime comum.

O sentido, então, mora na linguagem, nesse trânsito tão livre que o autor realiza entre um e outro registro, entre uma e outra forma de narrar. Com grande domínio das cenas e excelente manejo temporal, equilibrando-se sempre entre a exatidão e a reticência, Marçal consegue ir abrindo uma caixa de outra caixa, e assim fazer da obra um todo múltiplo e inextricável. A riqueza do livro se manifesta nessa variedade, sem que se perca sua coerência interna, sem que se torne um discurso desigual. 
Talvez a resposta que busquemos seja simples. O que pode a literatura, mesmo quando se aproxima assim de outras artes? Pode ser literatura, no mais profundo e mais veraz dos sentidos.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Julián Fuks

É autor de A ocupação (Companhia das Letras).