Literatura brasileira,

Desobedecer ao destino

Primeiro romance da trilogia criada por Edimilson de Almeida Pereira subverte a linguagem para recriar a tradição

26jan2021 | Edição #42

Inocêncio, Inoc, Esse de Agora. Esses são os nomes do narrador-personagem que troca de pele ao longo do romance O Ausente (Relicário), de Edimilson de Almeida Pereira, um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos. É o primeiro de uma trilogia intitulada “Náusea”, que se completa com Front (Editora Nós) e Um corpo à deriva (Edições Macondo), publicados simultaneamente no final do ano passado. Inocêncio nasce empelicado (envolto pelo saco amniótico) e passa parte da vida realizando curas, a confirmar a crença popular que faz dos empelicados seres especiais — é de notar que essa convicção não se restringe a regiões do Brasil atual, pois remonta à Europa do século 16. 

O protagonista segue a sina, colhendo os louros de certa fama, até dar em inesperada encruzilhada: um dos enfermos, Zé Vítor, o decaído, pede que ele não use seus recursos de cura e o deixe morrer. O pedido vem acompanhado de um estranho rumor, lúcida fala febril à beira da morte, que atormentará Inocêncio, levando-o ao desesperado desejo de tirar a própria vida. Mas sendo muitos e em estado de devir, o narrador passará por extraordinárias experiências de desenraização, rebatizando-se. Para livrar-se das amarras que o prendem ao poço escuro da tradição e alçar voo em direção ao azul inventado do céu, terá de girar em meio ao redemoinho rosiano e fundar nova pátria para as palavras: “E se eu me recusasse? Se negasse a língua? Se virasse ao contrário a erva curativa? E se eu? E se?”. 

Liberdade

A liberdade para tal ousadia Esse-de-Agora aprende com as mulheres de sua terra, em especial com a professora Djanira, sua Deja, aquela por quem flexiona o gênero em profunda admiração e chama de “minha amor”. Aprende também com dona Quitéria, companheira de Zé Vítor, “nem mãe nem esposa, tão-senhora de cada um de seus movimentos”, e com Elza de Siqueira, filha de um contramestre de Folia, “quase silenciosa”, “que se perdia por longas jornadas no campo ondulante de sempre-vivas” e era considerada por ele “o livro mais vivo dos arredores da Serra do Cavalo”. 

Ainda que tradição e ruptura, vida e morte, ruído e silêncio convivam lado a lado em O Ausente, a narrativa de modo algum recai em dualismo simplista. Nesse romance-fluxo, segundo conceito criado pelo próprio autor, não há linearidade temporal ou nexos explícitos encadeando a tessitura de um enredo, tampouco precisão espacial. Ainda que se reconheçam aqui ou ali paisagens mineiras sombrias marcadas pela lama que devasta cidades inteiras, montanhas cobertas por névoas e campos de sempre-vivas, é sob a imensidão turva da letra sobre o papel que se erige o romance: “Corto esse coração de pano, extraio sua verve — salto no redemoinho, girando na direção que desejo e escrevo, sem letra humana, o meu batistério”. 

É a partir do desejo de ultrapassar a língua que cura adoecendo e liberta aprisionando que brotam as palavras-devir, gerando a língua em movimento permanente, por isso mesmo sem a rigidez fixa da “letra humana”, obediente e responsiva aos que afirmam querer ouvir, mas são surdos ao dizer em outras línguas. O romance é feito de palavra mineral e vegetal, prima-irmã das pedras, das plantas e dos bichos. É selvagem e justamente por isso nos captura e surpreende.

Em Deja, principal personagem a dividir a palavra com o narrador, encontra-se a seiva que alimenta de coragem a vontade de desobediência de Inocêncio — desobedecer ao destino de empelicado, desvirtuar o discurso oficial, desprover-se de palavras feitas e rezas prontas. E o bonito é que a presença de Deja se agiganta, ainda que sua palavra ocupe poucas páginas no livro. Sua livre existência é tamanha que não é preciso lê-la para encontrá-la. Sua letra é de carne e osso e sempre-viva é a sua alcunha resistente. Ela convoca Inocêncio ao tempo dos sonhos, sem perder-se em devaneios. É a seu lado, na cama, que ele entra “num tempo dentro do tempo” e compreende que, se não for para “deixar-se ir pela coragem”, é melhor nem mergulhar. 

O romance deixa a sensação de termos vivido na pele os transes do narrador — comungamos sua experiência de outridade

O amor entre eles arde, não é romântico. “Tens que amar a liberdade, Inocêncio”, diz-lhe ela. “A vida não tem cura”, sentencia ainda. O modo como Deja vai se fazendo presente ao longo do romance condiz com sua natureza: é livre para ir e vir quando quiser, “é filha da vida”, suas ideias são outras, habita o tempo dos sonhos e “não está à sombra da costela de Adão”. Se convive com tantos outros em um homem só é porque vê com os próprios olhos, é “desejo que se pensa e não se curva”.

Palavra dessacralizada

Devir-liberdade é o que mais pulsa em O Ausente. Talvez por isso fique a sensação, ao término da leitura, de termos vivido na pele os transes do narrador — comungamos sua experiência de outridade, como diria Octavio Paz. O desejo de liberdade se traduz na busca da palavra inaugural, selvagem, desprovida de obrigações de cura, dessacralizada, desenraizada. Subverte-se a língua-função, recria-se a tradição. 

Estão lá as festas populares, Folia de Reis, Festa do Divino; os cantos de domínio público, como a “Tirana da rosa”; convivem os santos, os anticristos, Ecce Homo. Mas é sobretudo o “seu-sem-nome”, o “Lugar sem Lugar, anterior ao Começo”, “os que têm gramática e os mudos” que fazem uma outra língua (nem nova, nem velha) saltar sobre o romance, como uma onça: quer saciar a fome, está atrás de alimento vital, sabe que haverá embate e que, inevitavelmente, se misturará à própria presa. 

Inocêncio, Inoc, Esse de Agora compartilham com o leitor sua angústia em ser cordeiro: “Sempre houve um desconforto como se algo sob a língua quisesse me dizer outras coisas. Como se eu quisesse, enfim, ser dito de outra maneira”. Perplexos, depois de termos experimentado essa dicção outra, pronunciada em língua de sonho, saímos irmanados à metamorfose de Inocêncio, rebatizados pela experiência de ler lançando fora a membrana que transfigura e reduz em essencialmente empelicada a escrita humana. Contagiados pela palavra livre, traçamos nossa própria letra nas páginas do romance, transgredindo o silencioso pacto de leitor e desatamos o laço da obediência, encorajados pelo sussurro de Deja.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.