Literatura brasileira,

Ao paciente, a voz

O crítico de cinema e escritor Jean-Claude Bernardet fala da indústria da longevidade e reflete sobre a linguagem e a urgência criativa

01jan2022

Em maio de 2021, Jean-Claude Bernardet lançou O corpo crítico, pela Companhia das Letras. Trata-se, de fato, do corpo do crítico, o próprio autor, como pano de fundo para escrutinar a usura da indústria farmacêutica e hospitalar. Em tempos pandêmicos, de relação tensionada com a doença e de dependência da estrutura sanitária, a obra vem a calhar e aponta para uma pergunta importante: na luta pela vida, quem lucra com o sofrimento e a longevidade de pessoas adoecidas? 

Sem abusar de radioterapias estilísticas, num quase extermínio de adjetivos, advérbios e frases longas, o escritor empresta e adapta sua biografia à ficção para contar sobre um homem que decidiu interromper o tratamento do “Câncer nº 2”, cansado de ser coisificado em meio a máquinas. A ambiência, sisuda como uma sala de espera, constrói um cotidiano de relações, reflexões e o choque de quem o interpreta escolher a morte. Com a colaboração do companheiro Mateus Capelo, o resultado é uma prosa claudicada, que não entrega tudo ao leitor. Há a opacidade almejada e frases mancas, doloridas, que constroem um corpo narrativo de significado vivo. 

O corpo crítico também carrega o esgotado A doença (Companhia das Letras, 1996), em que o autor leva à literatura o HIV e a aids, também emprestados da vida — hoje, Jean vive com vírus indetectável. O livro causou espanto, mas já trazia na maca um homem que não precisava de lamento. Antonio Callado não gostou. Ele destacou à época o trecho de abertura do livro, uma cena de sexo, em que teria se dado a contaminação por HIV. Para ele, o autor estaria “ensinando a se contaminar”. Bernardet credita o furor de Callado à ausência de autocomiseração na narrativa, comum em outros livros sobre o tema. O livro veio para colocar, pela primeira vez, a voz do paciente em prevalência à moléstia: um tratamento agora retomado. A experiência do escritor se alastra sobre todo o texto. 

Jean-Claude Bernardet não romantiza a velhice e é direto: não lhe faz bem a longevidade como um dogma capitalista. “Não gosto deste momento da minha vida, não é necessário.” Custa caro sobreviver. Na entrevista a seguir, fala sobre literatura e estado de escrita, a busca crônica pela forma de expressão do pensamento, do corpo em movimento e do filme que finalizou durante a pandemia, #eagoraeoque, parceria com o diretor Rubens Rewald, que tem como protagonistas o próprio Bernardet e o filósofo Vladimir Saflate. Com pausas longas e reflexivas — e um bom humor pontual e risonho —, Jean faz um alerta: precisamos de outro discurso que não o do ódio. No ano que vem, lançará uma biografia em parceria com a editora Heloisa Jahn, com quem tem gravado sessões em que relembra sua trajetória, com histórias e reflexões — por isso mesmo, não será uma autobiografia, ideia que muito lhe desagrada. A dupla já soma mais de sessenta horas de conversas gravadas. 

O que inquieta você a ponto de começar um novo texto? 
Muitas coisas, mas eu não partiria de um assunto. Em geral, eu tenho um ímpeto de escrever e aí sai o primeiro jato, muito rápido. No caso do A doença, eu voltava para casa da USP (Jean Claude é professor emérito da Escola de Comunicação e Artes da USP) de ônibus, e é uma viagem longa. Então eu tinha muito tempo para ler. Um dia eu li, quase inteiro, o livro Assim vivemos agora, de Susan Sontag, e ele me motivou muito a escrever. Quando cheguei em casa, eu pensei: posso acabar a leitura e perder esse impulso ou ir direto escrever, que foi o que eu fiz. Depois de um tempo, não sei exatamente quando, houve um momento em que eu me dei conta de que, de certa forma, eu respondia à Susan Sontag, porque, no livro dela, o paciente não tem voz. Aí, de repente, eu pensei: então estou dando voz ao paciente. Atualmente, eu estou à espera de um novo impulso, que, confesso, está demorando para chegar. A vontade de escrever um texto com fôlego, ainda que curto. E a primeira frase… Nada me vem, por enquanto. Já O corpo crítico foi por meio de um convite, são dois processos muito diferentes. Já que esses dois textos falam de doença, eu tenho outras doenças, por exemplo. Uma é uma degeneração da retina, eu sou quase cego. A outra é uma osteoporose muito adiantada. Acontece que nem a osteoporose nem a degeneração da retina me inspiram (risos).

Como é o seu processo de escrita na lapidação do texto? 
Sempre tem o primeiro jato. Ele te dá uma matéria-prima. Sobre isso eu trabalho. A minha tendência é ir cortando, podando o texto. Eu evito, por exemplo, trabalhar com muitos adjetivos, evito advérbios… Eu gosto do que é lacônico, gosto das elipses de uma frase para outra, em que o leitor tem que dar um pequeno pulo. Gosto de fazer uma afirmação qualquer, mas cuja justificativa virá uma ou duas frases depois. Como se a frase, não se sabe muito bem o porquê, aparecesse e criasse uma instabilidade. Depois, o leitor pode restabelecer o equilíbrio. Acho que o texto pode ser esburacado. Eu não preciso dizer tudo ao leitor. Algumas coisas estão em suspenso e vão ficar mesmo, tem que ter uma leve opacidade. 

A sua ficção traz muito de sua biografia. No texto, é tudo ficção?
A partir do momento em que você está escrevendo, é tudo ficção. Porque o fluxo da vida tem que se submeter a uma forma narrativa de vocabulário, sintática, a regras. Portanto, a forma final não é a experiência vivida, é a organização da língua. Penso assim. Mas até adotei a autoficção. A meu ver, é uma palavra que se refere a memorialismo, biografia, autobiografia. Quando escrevo, posso ter vivenciado uma determinada situação e narrá-la dando um desenvolvimento que não foi o real, portanto tanto pode ser uma inspiração como uma adaptação do que vivi.

Quando escreveu A doença, após ler Susan Sontag, em que momento seu texto se encontrou com o dela?
Eu não me motivei muito pelo assunto da Sontag. A doença. Não foi isso. Foi a forma como ela estrutura a narrativa, como uma coroa, a partir do centro do que ela conta. E eu sou muito sensível a isso, a estruturas, à estética, mais até que à temática. Uma coisa notada por várias pessoas em A doença é que não é uma literatura de lamentação. Houve um programa [Manhatann Connection] em que o Paulo Francis fez uma matéria sobre três livros que tinham esse assunto, a aids, como base. Dois americanos e o meu. Essa literatura em geral e a dos dois americanos são de lamentação, mas a minha não é. Francis destacou muito o fato de o livro não ser de comiseração, de como eu não me considero vítima. 

Você nunca se colocou nesse lugar?
Nunca me coloquei nesse lugar de vítima. Depois de ter o diagnóstico (de HIV positivo), uma amiga me disse: “Mas logo você? Você tinha uma carreira pela frente!”. E eu me lembro de ter entrado em uma espécie de furor por ela fazer de mim uma vítima. A partir dali, foi consciente não ser vítima. Isso provocou até uma reação do Antonio Callado, na época. A doença saiu perto de ele ficar doente. Não lembro o que era, mas ele adoeceu [Callado morreu em 1997, após uma queda. Ele sofria de um câncer generalizado desde 1984]. A primeira coisa que eu narro nesse livro é uma trepada. A contaminação teria se dado aí. O Callado escreveu um texto me desancando porque eu ensinava as pessoas a se deixar contaminar. Eu fiquei em dúvida se era realmente isso ou se era outra coisa, porque ele ficou muito doente. E muito provavelmente não se portava bem quanto à ideia da morte próxima (pausa). 

Eu tenho uma relação com a morte bastante amigável. Não tenho temor, ao contrário. A morte muito próxima, breve, para mim se torna um estímulo de vida. Depois desse artigo, fui convidado para participar de um seminário sobre o livro na PUC e lá, o organizador, um filósofo, leu um trecho do livro. Exatamente esse exterminado pelo Callado. E ele fez o elogio do desejo. Um livro que fala de uma doença que pode levar à morte, mas abre com um elogio ao desejo, ao prazer. 

Você escreve sobre a longevidade ser um produto do capitalismo para lucrar com quem envelhece. Como lida com a própria velhice?
Eu não lido bem. Com essa osteoporose, eu vou parar no pronto-socorro só para tomar morfina, tamanha é a dor. Também não lido bem com pessoas amigas que têm noventa, 95 anos, e estão com dificuldades disto ou daquilo. Não acho que teríamos que passar por isto, não fosse a longevidade uma necessidade e um dogma capitalista. A minha vida, atualmente, é extraordinariamente reduzida. A dor me mobiliza o tempo todo, é o centro da minha vida. E a degeneração da retina me impede de ler. Mesmo ver televisão se tornou um limite. Dependo das pessoas para me informar, ou do Jornal nacional, que não me informa (ri). Estou numa situação em que me sinto em um declínio. O mundo vai se estreitando. Não gosto deste momento da minha vida. Não acho necessário.

O livro traz um forte questionamento e posicionamento político a respeito do que seria o “paciente coisificado”. Quando você teve essa concepção do paciente representado pela doença que carrega?
Agora, com O corpo crítico, foi a frieza dos médicos. Não me perguntaram se eu tinha outra doença, da minha cegueira, da minha dor. Depois de eu ter falado com meu geriatra, e ter decidido interromper o tratamento, fui falar com meus dois médicos. E perguntei: “Vocês concordam?”. Os dois disseram sim. Então perguntei: “Por que não me falou isso na primeira consulta?”. “Ah, porque aplicamos o protocolo-padrão…” Quando procurei uma médica especializada em reumatismo e osteoporose e lhe falei que o médico de antes era o médico da minha doença, ela entendeu imediatamente. Eu comecei a observar isso, certamente, quando fui diagnosticado com aids. Foram algumas situações bem difíceis. 

A palavra corpo está no título do novo livro, mas também é um sentido explorado em A doença. Como você definiria a relação desse corpo com a expressão do pensamento?
Faz muito tempo, muito mesmo, que eu penso sobre a formação verbal do pensamento. Li textos sobre artes plásticas em que há um pensamento pictórico que não se expressa verbalmente. Esse verbal é uma das formas de expressão do pensamento. E há pensamentos, como o musical, o pictórico, que são irredutíveis ao verbal. Isso é válido para dança, não é? Eu tenho um amigo bailarino e a gente sempre se diverte quando lemos uma crítica ou uma publicidade qualquer de dança que trata da incomunicação entre as pessoas ou do prazer em uma dança… Mas a dança trata dos movimentos do corpo do bailarino ou da bailarina, são pensamentos irredutíveis a outra comunicação. A dança fica na ponta dos pés, não tem tradução verbal. Não haveria uma expressão de corpo que seria transmissível por palavras. 

E a paralisação do corpo? A pandemia veio com esse signo do confinamento, de pausar a vida, para muita gente. Como foi para você?
Em 2020, quando começou o confinamento, o Rubens Rewald e eu acabávamos de filmar, só nos faltava uma cena [do filme #eagoraoque, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro de 2020]. Paramos para ver o que ia acontecer, cada um na sua casa. Mas, uns quinze dias depois, eu falei: “Mas não vou ficar parado esse tempo todo, vou?”. E começamos a montar por telefone. As ideias e sugestões eram enviadas para o montador, que operava as indicações e mandava o resultado para nós. Quando chegou ao ponto de corte fino, não dava mais. O montador tinha um grande galpão muito arejado e instalou computadores e telas de forma que podíamos trabalhar sem nos aproximarmos uns dos outros. A minha atitude, então, foi a de não parar. Não podemos parar. Alguma coisa eu tinha que fazer. E fizemos. 

Também no cinema você persegue a linguagem?
Tudo que eu fiz é linguagem. Esse último filme é linguagem. Quando tivemos um problema de som no filme, eu e Rubens entregamos o material para um técnico de som e um colorista, e veio tudo “bonitinho”. Mas não é isso, o filme estava um horror, o Rubens disse. A gente só tinha falado para levantar o som em alguns momentos e resolver um pequeno problema de colografia, era só para retificar. Dissemos pra desmanchar tudo. Tem uma certa agressividade com a linguagem, não é? 

Você descreveu algumas dificuldades físicas relativas às doenças. De que forma o mundo o atinge hoje?
Eu não enxergo mais. Não tenho como avaliar a produção do momento simplesmente porque não vejo nada. Eu sinto o mundo se estreitando inacreditavelmente. Consigo ver alguns filmes brasileiros, mas é muito limitado meu alcance. Não posso ler nem textos que me interessariam… mas, do que chega até mim, eu acho que vivemos uma luta social. O problema maior é derrubar a extrema direita. Muito provavelmente, somos todos responsáveis por essa situação, não é só o Bolsonaro. Eu não vejo a situação como algo individual provocado por um cara. E me irritam muito as pessoas e a imprensa, as redes sociais, que ficam escandalizadas com os absurdos falados pelo Bolsonaro. Eu acho que, quanto mais você faz isso, mais o faz crescer. Você o coloca em pauta e ele que pauta o seu discurso, não é? Mesmo que seja para ridicularizar. Outra coisa de que não gosto são as pessoas que odeiam. Minha família o apoia bastante, mas tem uma pessoa que o odeia. Não adianta odiar. Se você odeia, você fala a linguagem dele, do gabinete do ódio. Tem que mudar o discurso, porque, mais uma vez, ele está faltando. 

Como você reage a esse tempo de urgência criativa?
(ri muito). A gente marca para daqui a umas duas semanas e eu te dou a resposta… Bom, O corpo crítico é um texto que se pode chamar de urgente. O Rubens Rewald também fala de um cinema urgente, aquele que trata de questões atuais importantes dentro de um prazo viável. Se você tiver uma situação que parece muito urgente, mas acaba levando cinco anos para realizar um filme, a situação não é mais tão urgente. 

Quem escreveu esse texto

Guto Alves

Jornalista e produtor cultural.