Literatura brasileira,

A vida e a vida de Jorge Amado

Em biografia, Josélia Aguiar resgata a vida e a obra do romancista atacado pela esquerda e pela direita

01set2019

Mais de 37 romances publicados e traduzidos para 49 idiomas, em uma produção que atravessa todo o século 20, tornam Jorge Amado um nome fundamental da literatura brasileira. A essa prolífica obra vem se somar a história do menino nascido em Itabuna que convivia com coronéis, cordéis e prostitutas. E a do intelectual combativo, frequentador da vanguardista Academia dos Rebeldes na Salvador dos anos 1920, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre as décadas de 1930 e 1950 e deputado responsável pela lei de não perseguição às religiões afro-brasileiras. Com a publicação de romances folhetinescos e sensuais, o autor se tornou fenômeno editorial, sucesso ampliado pelas adaptações para cinema e televisão a partir da década de 1970, e consolidou de vez sua presença no imaginário popular.

Poucos devem se lembrar de Helena, muitos se lembram de Rita Baiana; mas ninguém, certamente, esquece Gabriela, a morena cor de canela que seduzia o turco Nacib pelo paladar. O romance lançado em agosto de 1958 chegou à quinta edição em apenas quatro meses e, ao contrário do que se imagina, foi muito bem recebido por críticos como Sérgio Milliet, Wilson Martins e Nelson Werneck Sodré. Gabriela, cravo e canela inauguraria um novo momento na produção do escritor, que optava por narrativas mais coloridas e voltadas para os costumes da terra, obras que não abandonariam, no entanto, a dimensão social.

A galeria de personagens marcantes não se restringiria a mulheres. A Gabriela, Dona Flor e Tereza Batista se juntariam Quincas Berro d’Água, boêmio que morreu duas vezes; Pedro Bala, símbolo da descoberta do mundo e da conscientização política; e Pedro Archanjo, militante da causa negra e personagem favorito do autor, espécie de alter ego misturado a traços de outros tantos. Personagens saídas do povo, protagonistas de histórias escritas para o povo. Em um país de especialização literária tardia, que invariavelmente condenava os seus escritores à miséria ou à necessidade
de servir ao Estado, Jorge Amado representa um caso raro de escritor bem-sucedido, tanto material quanto simbolicamente, cuja trajetória e obra sinalizam, com contradições e muitas irregularidades, os caminhos e descaminhos de quase um século da vida e da literatura brasileiras.

O crítico Miécio Táti publicou, na década de 1960, um perfil do escritor. Mas foi preciso esperar mais de meio século para ver nascer um novo estudo biográfico sobre esse autor tão peculiar em nossa cena literária. O recém-lançado Jorge Amado: uma biografia, de Josélia Aguiar, vem cobrir essa lacuna. O saldo é duplamente positivo: por resgatar a vida riquíssima de Jorge, da infância na fazenda de Itabuna à Casa do Rio Vermelho, da ardorosa militância comunista ao ótimo convívio com figuras como José Sarney e Antonio Carlos Magalhães; e pelo esforço de suprir o imenso déficit de biografias neste país cada vez mais desmemoriado (Gonçalves Dias, José de Alencar, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, João Cabral clamam por isso há tempos… quem haverá de ouvi-los?)

O trabalho de Aguiar se debruça sobre documentos de época, arquivos espalhados pelo mundo e valiosos depoimentos dos coetâneos de Jorge, costurando um volume assombroso de informações em uma narrativa saborosa e fluida. A autora enfrenta algumas questões espinhosas que cercam o escritor, como sua adesão sem reservas ao stalinismo, consubstanciada na trilogia Os subterrâneos da liberdade (1954) e no panegírico O mundo da paz (1951) — mais tarde renegado por “excesso de sectarismo” pelo próprio autor. Mas também revela os calafrios diante das revelações dos crimes de Stálin, anos antes do relatório-bomba de Nikita Kruschev, e o abandono do dogmatismo e da militância pecebista.

Logo nas páginas iniciais, os primeiros tempos de Jorge Amado na Bahia e no Rio de Janeiro impressionam. Estudante insubmisso, o menino grapiúna frequentava as sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (ihgb), centro da alta intelectualidade baiana. Como repórter policial, corria delegacias e necrotérios, até virar redator de O imparcial, ainda em 1931. Sob o estímulo da Academia dos Rebeldes, publicaria, juntamente com o jornalista Oswaldo Dias da Costa e o antropólogo Édison Carneiro, o romance Lenita, história de uma prostituta cortejada por um milionário e um arquiteto. Já por esses tempos se manifestava, então, o interesse de Jorge pelas intrigas amorosas e pelo “proletariado miserando”, que dariam a tônica de muitas das obras seguintes.

Amizades e política

Considerado seu primeiro livro “solo”, O país do Carnaval (1931), de estranho feitio existencial, recebeu resenhas de Agripino Grieco, Medeiros de Albuquerque e Brito Broca, que viam na vivacidade dos diálogos uma promessa de tempos áureos para a literatura brasileira. Com Cacau (1933) e Suor (1934), Jorge tomaria a massa como fonte de arte e beberia nas águas do romance proletário, corrente que explodia em todo o mundo na década de 1930. Aguiar conta que, por essa época, o autor anunciava romances que nunca seriam escritos, como Subúrbio, Cangaço e uma biografia sobre Zumbi dos Palmares.

Além de acompanhar a repercussão de cada romance publicado e suas condições de produção, a obra de Aguiar descortina aspectos pouco conhecidos da vida de Jorge. Como as grandes amizades com Pablo Neruda, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Pablo Picasso, alimentadas no exílio do pós-guerra; a residência, a convite da União de Escritores Tchecos, no castelo de Dobřiš, depois da expulsão de Paris, no começo dos anos 1950; as viagens frequentes a Moscou e às democracias populares na campanha pela paz; e a paixão progressiva por Lisboa, marcada pela convivência afetuosa com José Saramago, fã tímido que se tornaria grande amigo.

Outro aspecto revelador da biografia é a relação próxima de Jorge com Oswald de Andrade, iniciada ainda nos anos 1930. Por essa época, Oswald considerava o novo amigo a síntese de uma geração; Jorge, por sua vez, via em Oswald o maior escritor brasileiro de então, quando a maioria dos literatos tinha Mário de Andrade por referência. Em defesa de Oswald, à época da publicação de Marco zero (1943-5) e das pesadas críticas que recebera, Jorge chegou a alcunhar Otto Maria Carpeaux de “sujo subliterato fascista”. No entanto, décadas de amizade seriam desfeitas quando Oswald, cuja candidatura a deputado fora rejeitada pelo PCB, passou a acusar Jorge de estar a serviço do nazismo, um “Rasputin de Estância” (em alusão à cidade de seu pai, o fazendeiro João Amado). Eram tempos de amizades que nasciam e morriam ao sabor da política.

Com Mário de Andrade, a pouca proximidade logo se tornaria antipatia mútua: uma edição da Revista Acadêmica em homenagem a Portinari, patrocinada pelo governo Vargas durante a ditadura do Estado Novo, gerou discussão em torno da subvenção à revista, apoio duramente criticado por Jorge. A polêmica se estendeu à obra do pintor e se espalhou para outros periódicos. Mário saiu em defesa de Portinari, e a briga com Jorge nunca mais foi desfeita.

As disputas entre os “velhos” modernistas de 1922 e os “novos” romancistas do Nordeste acabariam conformando também parte da crítica, em particular a acadêmica, que via com desconfiança o êxito editorial cada vez maior do escritor. Jorge, no entanto, pouco se importava com seus detratores — ao menos era o que declarava publicamente. Mesmo que os dardos proviessem de estudiosos como Walnice Nogueira Galvão, autora de um ensaio sobre a obra de Amado, considerada machista e comercialesca. Ou de Abdias do Nascimento, um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro, que via nos livros do escritor excessos de sincretismo e mestiçagem.

Na verdade, a indisposição de parte dos intelectuais situados em São Paulo e no Rio de Janeiro parecia reforçar ainda mais a imago de escritor popular que, desde os anos 1930, ele próprio alimentava. Apropriando-se dos argumentos pouco lisonjeiros de alguns de seus críticos, Jorge orgulhava-se de ser o romancista de “putas e vagabundos”.

Ponto de peregrinação

A biografia mostra que o irrequieto filho de Oxóssi foi, aos poucos, procurando águas mais calmas e um ritmo mais sereno de criação. O retorno de Jorge e da escritora Zélia Gattai — com quem era casado — a Salvador nos anos 1960, quando passaram a morar na famosa Casa do Rio Vermelho, sinaliza esse último período, marcado também pelo afastamento voluntário da política e pela maturidade artística.

Verdadeiro museu particular e ponto de peregrinação de ávidos leitores, a Casa do Rio Vermelho era “habitada” por obras de Mário Cravo, Carybé, Oscar Niemeyer, Alfredo Volpi, Djanira e artistas populares de todo o mundo. Em meio às árvores, um Exu assentado por Mãe Senhora, a maior ialorixá da Bahia — afinal, Jorge, ministro de Xangô do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, era um “ateu que acreditava nos milagres do povo”, como gostava de dizer.

Nessa casa, hoje restaurada e aberta à visitação, foram escritos livros como Os velhos marinheiros (1961), Os pastores da noite (1964) e Tenda dos milagres (1969), que representavam uma imersão ainda maior na cultura afro-baiana com um senso estilístico mais apurado. No Rio Vermelho recebia amigos brasileiros, como Grande Otelo, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes; os baianos naturalizados, como Pierre Verger e Carybé; e parceiros espalhados pelo mundo: Pepetela, Harry Belafonte, Roman Polanski e o editor norte-americano Alfred Knopf, responsável pela publicação de seus romances nos Estados Unidos. No jardim da casa, ao pé da frondosa mangueira, passava as tardes em conversa com Zélia, sua Oxum mais bonita, companheira de vida e luta. Ali, em 2001, foram depositadas as suas cinzas, às quais se somariam as dela, sete anos depois.

Atacado, como Glauber Rocha, pela esquerda e pela direita, tido ora por radical e populista, ora como aburguesado e vulgar, Jorge Amado cedo caiu nas graças do público. Felizmente, sua obra vem sendo reavaliada pela academia nas últimas décadas, e agora ele tem sua vida admirável contada nessa biografia corajosa e delicada de Josélia Aguiar. Mergulhados como estamos na catástrofe atual, nossa sorte é podermos reencontrar, por meio dessa leitura, um Brasil que ao menos se projetava em sonho.

Quem escreveu esse texto

Fabio Cesar Alves

É autor de Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do Cárcere e o Partido Comunista Brasileiro (Editora 34).