Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O Estado pode ser amigo da liberdade de expressão?

Análise sofisticada de professor estadunidense sobre o direito democrático ilumina casos brasileiros recentes

01ago2022 | Edição #60

Discurso de ódio, regulação da pornografia, financiamento de campanhas eleitorais, alocação de recursos públicos para produções culturais e artísticas e monopólio dos meios de comunicação. Esses são os temas que conectam a argumentação teórica de Owen Fiss, professor de direito constitucional da Universidade Yale, em torno da seguinte pergunta: a que serve a liberdade de expressão? A obra A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública, escrita na década de 90, é composta de quatro ensaios que costuram a concepção de Fiss acerca do sentido de proteger a liberdade de expressão. Ele nos mostra que, sem enfrentamento honesto e rigoroso dessa questão, não podemos dar respostas coerentes aos conflitos de expressão que deixavam cidadãos e o Judiciário estadunidense perplexos na época. Acrescidas dos dilemas colocados pela expansão da internet e pelas crises da democracia, as questões continuam atuais. 

Teoria democrática 

Fiss escreve no contexto estadunidense, em que prevalece a ideia de que a liberdade de expressão é, acima de tudo, uma proteção do indivíduo contra investidas do Estado. Essa relação de inimizade se naturalizou porque, historicamente, o Estado apresentou riscos graves ao livre debate público. O autor, contudo, se afasta dessa tradição, afirmando que a liberdade de expressão não significa, sempre, proteger o indivíduo do Estado. Seria equivocado assumir que ela é salvo-conduto individual para qualquer discurso em qualquer contexto e que o Estado não teria um papel ativo na sua promoção. 

Fiss defende uma teoria democrática da liberdade de expressão: protegemos a liberdade de falar não porque ela seja importante para o falante, mas porque ela gera boas consequências para os ouvintes. A importância da expressão reside em um debate público rico, que apresente a mais ampla gama de informações e opiniões. Tal pluralidade é a condição de possibilidade para que as pessoas decidam sobre os rumos políticos de sua comunidade, ou seja, para o autogoverno democrático. Nesse sentido, o Estado teria o dever de ajudar a construir um debate público “desinibido, robusto e amplamente aberto”.

Invisibilizar concepções artísticas e modos de vida não ortodoxos empobrece o debate público e deteriora a democracia

As implicações da tese são diversas. Uma delas ressalta o papel ativo do Estado na alocação de recursos públicos visando a diversidade no debate social de ideias. Destacamos o desafio que a tese coloca a um posicionamento de senso comum acerca da democracia: Estado democrático nem sempre significa deferir às escolhas de uma maioria. Certamente não é o caso quando se tem em mente políticas públicas para a cultura.

A arte e o Estado ativista

No segundo ensaio, Fiss defende que as atividades de alocação de recursos à cultura pelo Estado devem, por uma exigência da democracia, refletir seu compromisso com a diversidade de ideias. Em cada comunidade, há perspectivas que dispõem de poucas oportunidades no mercado cultural. Essa dificuldade deve ser levada em conta pelo Estado na escolha dos projetos a apoiar. O ponto de Fiss, nesse sentido, é importante e contraintuitivo em relação aos deveres do Estado nessa área: o seu compromisso não é o de satisfazer os interesses da maioria. O Estado deve refletir uma compreensão mais sofisticada da democracia, que resguarde a abertura para novas perspectivas e que garanta a renovação de vozes. Dessa forma, o Estado se compromete a enriquecer a linguagem coletiva e nos trata com a profundidade que merecemos. 

Essa sofisticação passa ao largo do que tem sido a política cultural no Brasil. Bolsonaro vetou o projeto de lei “Paulo Gustavo”, criticando, entre outras coisas, a previsão de políticas afirmativas a produções e artistas da comunidade lgbtqia+. Após meses de pressão da classe artística, o Congresso Nacional promulgou a Lei Paulo Gustavo sem os vetos de Bolsonaro. Em outubro de 2021, a Secretaria Especial de Cultura proibiu o uso de linguagem neutra em projetos aprovados pela Lei de Incentivo à Cultura, o que, na prática, exclui a possibilidade de projetos com essa abordagem receberem recursos públicos. 

O governo parece partir do pressuposto de que, por ter sido eleito pela maioria, possui legitimidade para fortalecer apenas os projetos que se alinham aos seus valores culturais. A tese de Fiss nos aponta o equívoco profundo dessa visão. Apesar de algumas políticas públicas rastrearem os interesses majoritários — como é o caso, por exemplo, do orçamento participativo —, a lógica de atuação do Estado deve ser distinta no fomento à cultura. A democracia tem dimensões complexas. Uma delas é resguardar a diversidade de ideias para nos possibilitar escolhas ricas, interessantes e inovadoras de vida, tanto individual quanto coletivamente. O público precisa ser exposto aos mais diversos pontos de vista, inclusive àqueles que não encontram vazão por meio dos mecanismos regulares de mercado. No caso do Brasil, essas costumam ser as perspectivas de minorias raciais, de classe, étnica, de gênero, de orientação sexual, educacional e religiosa. Invisibilizar concepções artísticas e modos de vida não ortodoxos empobrece o debate público e deteriora a democracia. O empobrecimento da linguagem prejudica a todos, inclusive àqueles que participam dos grupos hegemônicos. 

O livro de Fiss é um exercício objetivo de formulação do sentido da liberdade de expressão e de defesa do papel do Estado na promoção desse valor. O texto nos resgata do campo de batalha polarizado no qual a liberdade de expressão é hoje dilacerada — no Brasil e no mundo — e nos restaura a reflexão cuidadosa e profunda, à altura da importância dessa que é considerada liberdade incontornável em democracias liberais. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Aline Herscovici

Bacharel em direito, é tradutora e pesquisadora do LAUT.

Clarissa Gross

É coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV-SP.

Danyelle Reis

É mestranda em teoria geral do direito e pesquisadora do LAUT.

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.