Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Brilho eterno do messias

Fanático, violento, racista e muito bem-sucedido, fascismo no Brasil tem trajetória contada em livro fundamental para pensar a era Bolsonaro

01out2020

Não há momento mais oportuno que o presente para tentarmos compreender melhor o papel histórico do fascismo no Brasil. O cenário atual de autoritarismo, doença e morte propiciado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro nos confronta com a necessidade urgente de entender os perigos do fascismo.

O Brasil deixou de ser um exemplo e uma liderança regional, e até mundial, para ganhar destaque em torno da epidemia, como um exemplo de má governança dentro de uma democracia. Bolsonaro explorou a crise para beneficiar sua posição política à custa do funcionamento democrático e da saúde da população. Não se trata de acaso, tampouco de algo novo. Como disse o filósofo Jason Stanley, o fascismo constitui um precedente a partir do qual podemos entender Bolsonaro e seu manejo da crise. “A política fascista sempre tenta usar crises, porque ela quer alimentar a ideia de que você precisa de um líder forte para protegê-lo. Esse líder precisa ser competente, para projetar que eles são as pessoas certas para protegê-lo. O que eles vão fazer é inverter qualquer crise a seu próprio favor, a favor de sua ideologia.” Uma ideologia que é, acima de tudo, antidemocrática. 

No Brasil, como nos Estados Unidos e em outros países, a democracia corre perigo, e não há como ter certeza de que a admiração pelas ditaduras, tantas vezes expressa pelo caudilho do Planalto, não acabará se traduzindo em consequências reais. A história do fascismo mostra que seu projeto político não fracassou por falta de anseios totalitários, mas devido à resistência de setores democráticos, veículos de comunicação independentes e o conjunto de todos os setores políticos, incluindo a direita não fascista. É preciso lembrar que, da mesma forma como esta não seria a primeira ditadura brasileira, essa configuração também não representaria o primeiro projeto fascista para o país. 

A respeito desse tema, é fundamental ler e aprender com o novo e excelente livro sobre a história do fascismo brasileiro, escrito por dois grandes especialistas no tema: os professores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo é um texto essencial para entendermos que os riscos do fascismo e da ditadura no país mais importante da América Latina não são novidade.

Integralismo 

O integralismo brasileiro foi fundado a partir de ideias brasileiras e influências globais. Seu líder, Plínio Salgado, reuniu-se com Benito Mussolini em meados de 1930 e, mais tarde, aceitou dinheiro enviado pelos fascistas italianos. Isso, contudo, não significa que o integralismo, fundado dois anos mais tarde, tenha sido um produto importado. Muito pelo contrário. O integralismo foi uma tentativa de reformular o fascismo em termos nacionais. Nesse sentido, os fascistas brasileiros não diferem em nada dos fascistas indianos, argentinos ou japoneses. Todos eles criaram fascismos sob medida para seus países e tradições nacionais.

No Brasil, o fascismo teve êxito: em nenhum outro país da América Latina o movimento foi tão visível

Como em quase todos os países, o fascismo brasileiro era fanático e irracional, um culto político, violento e racista, que buscava adaptar sua fusão entre política, religião e liderança mítica e antidemocrática à realidade local. Por isso, os fascistas brasileiros buscaram incorporar tradições consideradas indígenas. Sua saudação ritualística “anauê” (que na língua tupi  significa “você é meu parente”) foi um reflexo desse intuito. Eles também buscaram incorporar cidadãos negros às suas fileiras, embora  seu profundo antissemitismo revelasse um viés racista. Como apontam os autores, o fascismo teve grande êxito no Brasil: em nenhum outro país da América Latina o movimento foi tão visível e numeroso.

Assim como em outros lugares, a fidelidade ao líder teve papel central no fascismo brasileiro. Os fiéis consideravam Plínio Salgado não só um líder político, mas também religioso. Era um mito vivo que demandava fidelidade irrestrita. O fanatismo religioso levou à realização de casamentos e funerais organizados em torno da figura do chefe. Conforme aprendemos no livro, o significado da vida e da morte era atrelado à relevância que o fascismo lhes conferia através da figura soberana do líder. O fascismo atribuía aos seus crentes um sentido sagrado profundo. Nesse ponto, Plínio se comportava mais como rei divino que como político democrático. E foi exatamente esta a sua proposta: a ditadura de um homem melhor que os demais, que estava acima de todos. Um mito que personifica a nação e a cristandade em seu conjunto. Diante desse marco ideológico, a ditadura surgia como necessidade e desdobramento natural. 

Após conspirarem contra o regime de Getúlio Vargas, os integralistas foram reprimidos e Salgado buscou o autoexílio em Portugal. Ali, contemplou pela primeira vez a ideia de um Brasil com papel de destaque na nova ordem mundial do nazismo; mais tarde, refugiou-se na religião. Assim, principalmente após o término da guerra, Salgado arriscou vestir trajes democráticos e adornos cristãos que não lhe caíam bem em nenhuma situação. Quando retornou ao seu país de origem, tentou participar com os integralistas da política partidária, com resultados limitados e, inclusive, corruptos. Saíram-se melhor durante a ditadura militar, influenciando áreas como a educação e a cultura. Com a morte de Salgado em 1975, o neointegralismo, já aliado a skinheads e neonazistas, tentou ocupar algum espaço da extrema direita, mas seu sucesso só veio sob o bolsonarismo. 

Como os integralistas, ou seja, os fascistas do Brasil, Jair Bolsonaro acredita que a religião é intrínseca à política. Ele também se apresenta como líder messiânico que sabe tudo, ignora a ciência e o pensamento racional e glorifica a violência, propondo o mito a respeito de si mesmo e a fantasia e a mentira como forma de compreender a realidade. Bolsonaro não é um intelectual como Plínio Salgado — muito pelo contrário. Também se diferencia dos integralistas e de seu modelo econômico corporativo ao promover, como soluções para a economia, desregulação e medidas de austeridade que beneficiam os investidores. Essa mescla de neoliberalismo econômico e autoritarismo não é nova, mas Bolsonaro é até agora seu defensor mais ferrenho na região.

Como os integralistas, Jair Bolsonaro acredita que a religião é intrínseca à política

A economia neoliberal já conviveu com ditaduras admiradas pelo presidente brasileiro, como a de Augusto Pinochet, no Chile, e a junta militar na Argentina da década de 1970. Mais tarde, nos anos 1990, líderes de direita como o presidente peronista Carlos Menem, na Argentina, e Fernando Collor de Mello, no Brasil, propuseram uma mistura de neoliberalismo e populismo. Esses populistas não eram pós-fascistas como Donald Trump e seu aliado Bolsonaro. Na verdade, Bolsonaro e Trump talvez estejam mais próximos de ditaduras como a de Pinochet e a dos generais argentinos que de seus antecessores populistas. Nesse sentido, seu projeto encontra um precursor claro no integralismo, como Pereira Gonçalves e Caldeira Neto explicam tão bem nesse livro incisivo que nos ajuda a pensar o presente. Trata-se de uma obra essencial para entendermos a atualidade do Brasil a partir de uma perspectiva histórica. 

Assim como Trump e seus homólogos europeus, Bolsonaro quer superar a lacuna histórica entre o fascismo e o populismo, e esse livro nos permite entender a gravidade da situação. Em resumo, ele mostra o quanto o bolsonarismo e o fascismo têm em comum. (Tradução de Bruno Mattos)

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Federico Finchelstein

Historiador, escreveu Do fascismo ao populismo na história (Edições 70)