Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A pobreza de tempo das mulheres

Ensaio destaca como normas jurídicas neutras discriminam a mulher e aumentam as desigualdades nas relações de trabalho

24out2021

As mulheres são pobres de tempo. Essa é a ideia central que Bárbara Ferrito mobiliza para mostrar como o direito é um agente que estrutura, institui e contribui para a existência de desigualdades e discriminações de gênero no mercado de trabalho. Em Direito e desigualdade, ela sustenta que o direito, ao se buscar neutro e não considerar as diferenças entre homens e mulheres na sociedade, discrimina indiretamente a mulher e fomenta desigualdades nas relações de trabalho.

A autora argumenta que o trabalho é uma forma de obtenção de meios materiais para a sobrevivência e influencia a inserção das pessoas na vida política, social e afetiva. E que o direito do trabalho surge para regular e estruturar as relações laborais, sendo construído a partir de um sistema capitalista e patriarcal. Assim, algumas normas de viés paternalista, em vez de proteger e ajudar as mulheres, acentuam as desigualdades. São apresentados oito obstáculos ao trabalho feminino: a segregação e exclusão de determinadas áreas e atividades; a brecha salarial e as diferenças salariais; o teto de cristal e os obstáculos invisíveis à ascensão na carreira; a violência simbólica por meio de microagressões; a conciliação entre a vida laboral, a família e outras questões pessoais; o assédio (moral e sexual); a feminização da pobreza; e a seletividade das normas trabalhistas.

Para a autora, esses obstáculos estão relacionados à ideia de tempo de trabalho e de não trabalho. Ferrito faz uma reconstrução histórica para mostrar como a ideia de tempo é construída socialmente e tem uma utilização econômica (“tempo é dinheiro”). Dessa forma, a medição do tempo influencia os ciclos do trabalho e das tarefas domésticas, tornando-se um produtor de identidade.

O tempo de trabalho é entendido como aquele que é “ocupado com as atividades diárias necessárias à preservação da vida ou voltados para a acumulação de terceiros”, enquanto o tempo de não trabalho é aquele fora da jornada de trabalho (remunerado) e dedicado a outras obrigações, tais como serviço doméstico, trabalho de cuidado, relações associativas e religiosas, entre outras.

O mercado de trabalho demanda das trabalhadoras uma disponibilidade de tempo que elas não têm

O conceito de tempo é, para a autora, central para a compreensão das desigualdades de gênero na sociedade, uma vez que as pesquisas apontam que os papéis de gênero condicionam a disponibilidade das pessoas sobre o próprio tempo. Com relação às atividades realizadas pelas pessoas ao longo de seus dias e ao cálculo do uso do tempo, a autora menciona a classificação internacional da Organização das Nações Unidas (onu), que inclui as atividades como: trabalho (remunerado, produtivo para o próprio consumo e a procura de trabalho); trabalho voluntário; afazeres domésticos; cuidado de pessoa da família; estudo; socialização; presença em eventos/locais culturais, de entretenimento e esportivos; jogos, passatempos e hobbies; atividades físicas e práticas de esporte; uso dos meios de comunicação em massa; e cuidados pessoais e atenção à própria saúde.

O livro contém dados estatísticos que indicam como as mulheres, brancas e negras, dedicam mais horas a trabalhos com cuidado de pessoas e/ou com tarefas domésticas, bem como estão mais presentes em trabalhos de tempo parcial. Essa distribuição desigual de encargos, obrigações e do uso do tempo entre homens e mulheres dentro do lar gera o que a autora chama de “pobreza de tempo”.

Em sua visão, os estudos tradicionais sobre pobreza ignoram os impactos negativos da falta de tempo em razão dessa distribuição desigual. Os trabalhos desenvolvidos no interior do lar (trabalho reprodutivo) são essenciais para a sobrevivência das famílias e para a execução dos trabalhos produtivos e geração de renda. O tempo afeta as duas dimensões do trabalho: produtiva e reprodutiva. A pobreza de tempo “demonstra o custo fixo para ingressar no mercado de trabalho, principalmente entre pessoas que possuem grande demanda de trabalho doméstico e de cuidado ou de deslocamento”.

Tal como estruturado atualmente, o mercado de trabalho demanda das trabalhadoras uma ampla disponibilidade de tempo, algo que elas não têm por causa das demandas provenientes de seus papéis sociais. Assim, os parâmetros sexistas que regem o mercado geram a exclusão das mulheres de determinadas profissões e de cargos de comando.

A autora faz uso do conceito de discriminação indireta para sustentar que o direito, especialmente o ramo trabalhista, opera em uma estrutura social com estereótipos e papéis de gênero e acaba por criar normas que reforçam as desigualdades de gênero. Ferrito apresenta exemplos de normas que, apesar da intenção de tutelar o trabalho das mulheres e apoiá-las, acabam gerando impactos negativos — o que ela denomina de efeito bumerangue. É o caso, por exemplo, da diferenciação de efeitos diferentes para a maternidade e a paternidade, criando estereótipos sociais de que as mulheres ficarão mais tempo afastadas de suas atividades, o que impacta em contratações.

Efeitos danosos

Para Ferrito, as licenças, a flexibilização de jornadas, as jornadas especiais (escala de 12 x 36, por exemplo), horas extraordinárias e trabalho em regime parcial geram efeitos danosos para mulheres, impedindo sua inserção em algumas carreiras, sua ascensão a posições de liderança e, consequentemente, sua mobilidade social.

Diante disso, ela sustenta a importância da corresponsabilidade de homens e mulheres nas tarefas domésticas e de cuidado, bem como a adoção de políticas baseadas na transversalidade de gênero -— a incorporação da perspectiva de gênero em todas as etapas da formulação de políticas (públicas e privadas), bem como na definição de objetivos e metas. Isso significa analisar como as políticas podem impactar de forma desigual homens e mulheres e, assim, criar políticas que não reforcem estereótipos e desigualdades.

Ferrito nos auxilia a refletir sobre como normas jurídicas que são criadas para “proteger” as mulheres acabam gerando mais desigualdade. E é exatamente por isso que o livro deve ser lido por todos e todas que trabalham em prol da equidade entre os gêneros no mercado de trabalho. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Anna Carolina Venturini

Doutora em ciência política pelo Iesp-Uerj, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.