Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A Lava Jato e o tempo dos processos judiciais

Livro de Fabiana Alves Rodrigues mostra a politização do sistema de Justiça e a ausência de mecanismos de controle para conter os abusos

01dez2020

     O tempo é um rato roedor das coisas,       
      que as diminui ou altera no sentido
      de lhes dar outro aspecto.

               Machado de Assis, Esaú e Jacó

O tempo é um dos elementos-chave para a compreensão dos processos judiciais. O uso do tempo é uma estratégia valiosa, que define o futuro dos acusadores, investigados ou réus. No entanto, com frequência ele é desconsiderado nas explicações sobre os resultados das decisões judiciais. 

Esse não é o caso do primoroso livro de Fabiana Alves Rodrigues, uma análise cuidadosa sobre os processos judiciais da Lava Jato, que nos permite compreender os resultados produzidos pela operação. Sua análise sobre a “gestão das investigações”, isto é, a atuação formal dos operadores do sistema de Justiça (Ministério Público e, sobretudo, Justiça Federal) nas investigações e ações penais levadas a cabo na Lava Jato, focaliza as estratégias desses atores e, em especial, como eles lidam com as normas jurídicas que regulam os procedimentos criminais. 

Nessa atuação estratégica, o tempo é elemento central. As investigações priorizaram alguns réus em detrimento de outros, e a celeridade dos processos explicita tais decisões: enquanto alguns casos foram preteridos e suas decisões judiciais levaram anos para serem proferidas (uma delas precisou de mais de 1.600 dias, apesar de envolver poucos réus), outros foram julgados em menos de duzentos dias. 

Na escolha do que seria julgado, tiveram primazia casos em que os réus tinham mais chances de colaborar, entregando informações sobre o esquema de corrupção e, assim, conquistando penas mais brandas. É o que a autora chama de “agilização seletiva de processos”.

Aqueles que eram alvos da operação, especialmente os membros do alto escalão da política, tiveram processos e sentenças rápidas. Duas ações contra José Dirceu, do PT, foram sentenciadas em menos de 250 dias cada uma. Suas penas foram elevadas pelo TRF4 de vinte para mais de trinta anos de prisão. Os recursos e apelações foram julgados com uma celeridade ímpar, sendo os últimos deles decididos em inacreditáveis 28 dias. João Vaccari, acusado de ser o operador financeiro do PT e elo central do esquema de corrupção, teve cinco ações julgadas pela Justiça Federal de Curitiba entre 189 e 276 dias, com pena que soma 47 anos de prisão. 

Outro exemplo — este o caso mais emblemático — é o do ex-presidente Lula. A gestão temporal do caso Leo Pinheiro foi importante para Lula, pois sua delação fundamentou a condenação do ex-presidente, que teve um ritmo de tramitação com “marcas sugestivas de agilização para inviabilizar sua candidatura em 2018”, já que sua primeira condenação saiu em 301 dias, com a realização de 25 audiências num intervalo de 169 dias. O segundo julgamento durou mais do que o dobro e, se o primeiro julgamento fosse mais lento do que fora, Lula não teria sido excluído da eleição. A gestão do tempo fez toda a diferença para o futuro político do réu — e do país. Esse é apenas um dos casos envolvendo Lula. A leitura do livro é tão instigante, e esse caso é tão repleto de detalhes reveladores, que o leitor não merece mais spoilers por aqui.

Todavia, processos sociais são complexos e multicausais e, portanto, o tempo não é a única variável explicativa. Ciente disso, a autora vai além e destrincha uma série de mudanças institucionais (normas legais e infralegais), demonstrando ao leitor como o combate à corrupção ganhou espaço na agenda judicial no Brasil. 

A troca de informações entre juízes e promotores não é permitida, mas raramente há punições

Na dimensão legislativa, foi aprovado um conjunto de leis mais rigorosas para combater a corrupção, contando com intensa participação dos atores do sistema de Justiça em suas formulações. Para aumentar a capacidade de identificação dos crimes, investiu-se na dimensão organizacional, com capacitação de recursos humanos e especialização dos órgãos judiciais voltados ao combate à corrupção.

Fatores externos

Fatores externos ao Judiciário também criaram um ambiente propício à Lava Jato. Pressões internacionais levaram a acordos de reforço das estruturas administrativas e judiciais voltadas ao combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e à improbidade administrativa. Elas impulsionaram mudanças internas e foram relevantes na obtenção de documentos bancários, como aqueles atinentes aos processos de bloqueio e repatriação de valores. 

Outro elemento essencial foi a rede de relacionamentos envolvendo membros do Judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público. Ainda que a narrativa seja cuidadosa ao tratar das mensagens que vieram a público por meio do The Intercept, o fato é que elas confirmam a proximidade entre atores que deveriam atuar de maneira independente, mas cuja parceria foi essencial para a eficiência da operação.

O aprendizado institucional, decorrente da atuação de diversos atores da Lava Jato em processos anteriores, levou à utilização de algumas estratégias — a condução coercitiva, a prisão preventiva e a delação premiada. A autora demonstra a estreita conexão entre elas, observando um mecanismo recorrente: a libertação de investigados em prisão preventiva após colaborarem com as investigações. 

A decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2009, autorizando execução da pena antes do trânsito em julgado, influenciou os resultados da Lava Jato, pois a execução antecipada da pena incentiva a colaboração premiada. Como os réus também fazem a gestão do tempo, visando diminuir seu tempo de prisão, delatam — ainda que sem elementos concretos que sustentem a delação premiada. Com o tempo, aliás, a própria Corte reviu sua posição sobre a prisão antes do trânsito em julgado, e a regra foi novamente modificada em 2019, retornando à posição anterior a 2009. O tempo importa não apenas para a “gestão das investigações”, mas para a gestão dos processos judiciais em sentido amplo.

Isso leva ao último aspecto que o livro suscita: a ampla autonomia dos operadores do direito sem a contrapartida do controle social ou estatal (accountabilty). O uso da prisão preventiva é uma escolha dos operadores do sistema de Justiça. A troca de informações processuais entre juízes e promotores não é permitida, mas os instrumentos de punição contra condutas institucionalmente promíscuas raramente são aplicados, como revelam as pesquisas da ciência política brasileira. A divulgação de elementos da delação premiada para a imprensa, dias antes das eleições para presidente, também é conduta imprópria para um juiz, mas foi praticada pelo magistrado central na operação sem nenhuma consequência legal. A politização da Justiça ficou clara nesse e em muitos outros casos relatados no livro.

Enfim, se o uso do tempo foi estratégia central para o sucesso da Lava Jato, a autonomia dos operadores do direito é condição sine qua non para que os excessos cometidos sejam desconsiderados pelas instituições estatais de controle, ainda que sejam ilegais e passíveis de punição. A ausência de instrumentos de accountability permitiu os usos e abusos não apenas no manejo do tempo, mas também na mobilização estratégica das regras institucionais e das redes formais e informais pelos operadores do direito. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Vanessa Elias de Oliveira

Organizou Judicialização de políticas públicas no Brasil (Fiocruz).