Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A democracia morre no fim deste enredo

Crônicas de Miriam Leitão ajudam a entender os eventos extremos (e inéditos) que desfiguraram a vida democrática no Brasil

01mar2022

Washington, domingo, 17 de março de 2019, 20h. Em jantar na residência do embaixador brasileiro, Jair Bolsonaro, recém-empossado na presidência da República, deixa claro que conceber um projeto para o Brasil não faz parte dos propósitos de seu governo: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, anunciou aos integrantes da sua comitiva e a um punhado de convivas da extrema direita norte-americana.

Prometeu e cumpriu. A agenda que o levou ao poder era um pacto com o passado, como escreve Miriam Leitão em A democracia na armadilha, que reúne 153 colunas publicadas no jornal O Globo entre 2016 e 2021 que recompõem a campanha eleitoral de 2018 e recuam no tempo até o ano de 2016 para sublinhar as consequências da inação de um Congresso que deixou impune a exaltação da tortura feita por Bolsonaro, então deputado, durante a sessão especial de deliberação sobre a autorização para a abertura do processo de impedimento contra Dilma Rousseff. Havia ali a apologia de crime imprescritível, e a defesa da tortura por um parlamentar vai além do que a democracia pode aceitar.

A crônica política é um gênero de escrita difícil de executar. São textos curtos feitos sob pressão para publicação diária que apresentam um ponto de vista narrativo e uma interpretação crítica cujo sentido o próprio leitor vai conferir. Uma vez reunidos em retrospectiva, contudo, ganham novo fôlego. Providenciam registro e alinhavo para o entendimento da rede de ações e escolhas que se processaram em determinada conjuntura, além de abrir um panorama sobre os sentidos dos acontecimentos em determinado momento da história do país. O livro de Miriam cumpre à risca o programa: fornece recursos de interpretação da realidade nacional e evidências empíricas para lidar com os eventos extremos (e inéditos) que desfiguraram a vida democrática no Brasil.

Dispostas em ordem cronológica, as crônicas cobrem pouco mais da metade do mandato presidencial de Bolsonaro. Foi o recorte temporal necessário para Miriam projetar as inúmeras conexões que informam o itinerário capaz de narrar uma história e seus efeitos de destruição. Diante do que parecia incompreensível, muita gente abrigou-se no sentimento de previsibilidade: imaginavam um governo ruim, com uma pauta obsoleta, mas que poderia ser absorvido e domesticado pela flexibilidade das instituições democráticas. Os textos iluminam o contrário: nos permitem ver o propósito e o formato de um projeto de poder que elegeu a doença e a morte como aliadas, que representa um perigo real para a democracia e que se transformou em um flagelo para o país.

A armadilha que o livro revela é esta: a ação de desmanche contínuo da democracia praticada por um governante legitimamente eleito, mas com vocação para autocrata. É algo inédito na história do país. No Brasil republicano, até a posse de Bolsonaro, o experimento democrático só desmoronou pela força de golpes de Estado. Nesse caso não há corrosão gradual, silenciosa: a ação é desfechada de fora para dentro do Estado para derrubar tudo, em um espaço curto de tempo, transgredindo o ordenamento jurídico e político, rompendo a Constituição, invalidando toda a legislação em vigor.

Bolsonaro, ao contrário, avança passo a passo. Utiliza atos e ações com efeito cumulativo para degradar a ordem democrática, destruir os mecanismos de representação, minar o sistema judicial e a mídia, erodir as instituições de dentro para fora, uma a uma, até o colapso final. “A democracia em tempos modernos não tem morte súbita. Morre aos poucos”, cravou Miriam, ainda em 2019.

Destruição planejada

Bolsonaro sabe o que quer e a empresa de destruição tem método. Com ou sem estrondo, as agências de Estado e as unidades vitais da máquina pública são erodidas uma a uma: ou pela ação de figuras medíocres alçadas à chefia e a cargos administrativos estratégicos, ou por cooptação. A destruição principia na naturalização da ideia de que ao governante e seu corpo de auxiliares não há limites. Em 21 de abril de 2020, Miriam abre sua crônica com a declaração do presidente: “A Constituição sou eu”.

À medida que o tempo passa, Bolsonaro sente-se à vontade e avança — os exemplos se multiplicam no livro, caso das ações levadas a efeito no meio ambiente. “A luta para conter o desmatamento foi resultado de uma longa e trabalhosa tessitura institucional”, escreve a cronista em novembro de 2019. “O governo Bolsonaro fez um ataque frontal à proteção e deu o sinal de que o Estado estimula o avanço dos desmatadores.” Não parou de estimular até hoje. Em janeiro de 2022, o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) informou que, somente naquele mês, foram desmatados 360 quilômetros na Amazônia Legal — a maior área já registrada desde que o monitoramento teve início, em 2015.

Os textos nos permitem ver o propósito e o formato de um projeto de poder que elegeu a doença e a morte como aliadas

Instituições esgotadas têm baixa capacidade de reação: podem se apequenar, a paralisia pode se manter indefinidamente, podem desmoronar uma depois da outra. Ou, no limite, se comportar no sentido oposto àquele para o qual foram criadas. Na cultura, como registra Miriam em janeiro de 2020, cai o secretário, fica o projeto. O governo capturou todos os nacos do antigo ministério: “A cultura sob encomenda, a arte fabricada para um projeto de poder, a história reescrita num governo que exalta torturadores […]. A questão central é simples: Roberto Alvim não estava só nem falava sozinho”.

Fomentar crises é o complemento necessário para que Bolsonaro escale o trabalho de destruição em curso. A cronista aponta que uma coisa não vem sem a outra. A crise aplana terreno, cria oportunidades e mantém aceso o clima geral de estresse institucional. Ademais, vistas em conjunto, as crônicas evidenciam que as crises são móveis: envolvem âmbitos diferentes da vida pública nacional e se deslocam rapidamente na paisagem política.

Por outro lado, o comportamento perverso de Bolsonaro durante a pandemia expôs aos brasileiros a versão envilecida do próprio país. “O Brasil se acostumou à dor sem consolo”, escreve Miriam em maio de 2020. “Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — ‘quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína’ — não há apenas mau gosto. Há perversidade […]. Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar este tempo extremo […]. Haverá, então, a batalha das versões, e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.”

Crônicas são registro e testemunho — o livro de Miriam Leitão atravessa o presente. Mas o gênero permite igualmente ao autor examinar os fatos e conceber uma visada narrativa sobre tudo aquilo que vê; elas facultam ao cronista a oportunidade de reelaborar experiências e realizar o trabalho político de se mover no debate público do seu tempo.

Assim, A democracia na armadilha funciona um pouco à maneira de um “alarme de incêndio”, tal como imaginado por Walter Benjamin em Rua de mão única: diante de um perigo catastrófico e “antes que a centelha alcance a dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”. Porque percebe a natureza do perigo, Miriam também reivindica, de imediato, ao leitor: “Bolsonaro havia montado uma armadilha para a democracia brasileira. A tarefa imediata seria desarmá-la. Para isso não bastaria derrotar Bolsonaro e os herdeiros de seu projeto de extrema direita. Seria preciso olhar para o futuro e fortalecer as bases do pacto civilizatório feito ao fim da ditadura militar. A preciosa democracia, dolorosamente conquistada, será mais forte quanto mais avançarmos no sonho de reduzir as nossas profundas desigualdades”. Então, é necessário reagir. Nós já sabemos como a democracia morre no fim deste enredo.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Heloisa Murgel Starling

Historiadora, escreveu Ser republicano no Brasil Colônia (Companhia das Letras).