Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A definição de populismo

Pensador francês faz um diagnóstico das ameaças que vêm corroendo as principais democracias do mundo, a nossa em particular

17dez2021 | Edição #53

“Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.” A afirmação foi feita pelo então candidato Jair Bolsonaro, em 2018, referindo-se aos seus adversários na eleição. Não se sabe, contudo, a que lei ele estava se referindo. 

Ajuda a entender se olharmos para outra declaração dele, de 2017: “Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adéquam ou simplesmente desaparecem”; ou ainda para uma mais antiga, de 1999, reagindo à recusa do presidente do Banco Central da época de depor em uma CPI: “Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”. 

A maioria dos eleitores brasileiros, mesmo diante de tantas evidências, decidiu eleger um presidente sem nenhum respeito pela democracia, que nunca teve problemas para vocalizar o que há de mais brutal, violento e boçal na sociedade brasileira. Houve, inclusive, quem acreditasse que ele poderia renovar nossa democracia.

‘O século do populismo’ responde à realidade da chegada ao poder de líderes populistas em países cuja política interna tem impacto para além de suas fronteiras

Foi em ano muito oportuno, portanto, que a editora Ateliê de Humanidades lançou O século do populismo, do pensador francês Pierre Rosanvallon, que neste livro se dedica a pensar as ameaças que, com maior ou menor força, vêm corroendo, pelo interior, as principais democracias do mundo, a nossa em particular. O século do populismo responde à realidade da chegada ao poder, nos últimos dez anos, pelo menos, de líderes populistas em países cuja política interna tem impacto para além de suas fronteiras, sobretudo nos Estados Unidos, com Donald Trump, e, claro, no Brasil, com Bolsonaro. 

A publicação é ainda mais importante porque poucos autores têm o preparo de Rosanvallon para apresentar um diagnóstico e nos dar indicações de como resistir. O seu trabalho combina rigor conceitual, conhecimento histórico e análise sociológica. O seu projeto intelectual pensa as aporias da democracia, as diversas tensões e torções que marcam a experiência moderna dessa forma de governo desde o seu início, com a revolução Francesa e a Americana. 

Rosanvallon analisa a democracia por meio da qual a sociedade de indivíduos, representada pelo governo (mas não só), exerce a soberania popular. Para ele, são estes dois pontos — a sociedade de indivíduos, de um lado, e o governo representativo, de outro — que inauguram a compreensão moderna do político.

Diagnóstico

Ao longo de sua obra, o pensador apresenta uma história do político e sua dimensão reflexiva do social, que vai se configurando a partir da experiência moderna da igualdade e da liberdade. O decisivo é que tal experiência é marcada por uma indeterminação fundamental dos nossos conceitos políticos, a começar por aquele que se coloca como o acordo entre a liberdade e a igualdade: o conceito de democracia. 

O que é a democracia? Quem exerce o poder e como ele é exercido em um governo democrático? Qual a relação entre direito e democracia? Qual o limite do poder soberano? Rosanvallon não nos oferece uma definição normativa de democracia, que pretensamente resolveria essas e outras questões. Ele nos mostra o que foi pensado a partir desse termo e o que, entre tensões e torções, se apresenta então como conceito.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, temos a definição de um ideal-tipo do populismo, suas notas características. Na segunda, esse ideal-tipo é observado na história em três contextos: o cesarismo de Napoleão 3º; o período que vai de 1890 a 1914, quando há a universalização do voto e o surgimento dos partidos de massa em uma sociedade de classes; e, por fim, o populismo latino-americano. Na terceira parte do livro, o autor critica a aposta populista em “revitalizar” a democracia. 

O populismo não se apresenta como antidemocrático, mas realiza uma certa visão da democracia que responde a problemas reais ligados às aporias da representação

Este é o ponto central: o populismo não se apresenta como antidemocrático. Além de utilizar os instrumentos da democracia, notadamente o processo eleitoral, para destruir a democracia, o populismo realiza uma certa visão da democracia que responde a problemas reais ligados às aporias da representação. 

O projeto populista, tanto à direita quanto à esquerda, parte do diagnóstico de que o povo é mal representado e, mais grave ainda, tem sua soberania capturada por atores não representativos, sejam estes internos (como o Poder Judiciário, agências reguladoras, imprensa livre) ou externos (instituições internacionais, como Nações Unidas, FMI, Parlamento Europeu).

A alternativa populista se apresenta como resposta ao desencanto pela democracia vivido por uma sociedade que se encontra dilacerada, na qual já não se vive a experiência do comum como algo a ser defendido; uma sociedade que compartilha medo, sentimento de impotência, de ressentimento, de que se é descartável, sem importância, irrelevante. É esse conjunto de sentimentos que o populismo captura e vocaliza, criando o sujeito de tais sentimentos: o povo, como uma realidade imaginada. 

Nas palavras de Rosanvallon, “A palavra ‘povo’ é dupla, como Janus. Ela ecoa a ideia de uma certa grandeza moral, ao mesmo tempo que justifica os ódios mais perturbadores. Ela constrói o campo político de tal maneira que o adversário só pode ser um inimigo da humanidade. Ela serve para nomear a infelicidade, ao mesmo tempo que indica o caminho de um certo tipo de mudança”.

O povo passa a se organizar em torno da figura de um líder executivo, sem mediação: “Hoje [dizia Chávez em 1999 de modo lapidar], eu me converto no instrumento de vocês. Eu mal existo e eu realizarei o mandato que vocês me confiaram. Preparem-se para governar”. O Executivo só existe como poder instituído por um povo e encarnado na figura do líder. Mas o povo também só existe através do poder que ele próprio institui e que, exercido em seu nome, realiza a sua vontade. 

A mudança, então, aparece sob a forma de uma “democracia iliberal”, ou “democratura”. Com a promessa de regenerar a democracia, o caminho populista começa com o processo daqueles procedimentos e instituições que, nas democracias, foram imaginados para “prevenir o risco de tirania da maioria, dando [para tanto] lugar central à garantia da integridade e da autonomia das pessoas”. 

Prescrição

Como não se trata de apenas compreender o fenômeno, mas de propor alternativa, Rosanvallon se dedica mais longamente a discutir o populismo de esquerda. Na cena intelectual, este é representado sobretudo por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, autores de Por um populismo de esquerda (Autonomia Literária, 2020) e A razão populista (Três Estrelas, 2013), respectivamente. Na cena propriamente política, por Jean-Luc Mélenchon e o seu movimento França Insubmissa; pelo Podemos, da Espanha, do qual Chantal Mouffe foi grande animadora; e pelo chavismo, na América Latina. 

Se o livro dialoga mais diretamente com a esquerda, é porque dela se espera que retome e aprofunde o seu laço com a democracia, e não que a empobreça ou abandone em nome de uma razão populista ou de uma visão agonista do político, ou, como ainda se observa aqui e ali, na aposta em uma revolução supostamente redentora e regeneradora.

Ou as pessoas sentem que a democracia é importante para a vida delas, ou é tolice imaginar que as pessoas se mobilizarão por ela

Qual a saída? Em primeiro lugar, ter claro que o projeto populista se coloca como resposta a problemas reais, mas propõe respostas que empobrecem a experiência democrática. Rosanvallon propõe mais, e não menos, democracia. Para ele, a saída não está em simplificar, mas em complexificar a democracia, recusando, de saída, a figura de um povo-uno, homogêneo. É necessário insistir na indeterminação constitutiva desse macrossujeito, bem como na indeterminação do conceito de democracia. 

Se a democracia se dá no embate, e o próprio conceito está em disputa, o ideal democrático reúne a ideia de como deve ser a sociedade democrática: uma sociedade de indivíduos livres, conscientes, informados e iguais. Para Rosanvallon, uma sociedade de iguais não significa uma sociedade homogênea, e sim uma sociedade pluralista, que contempla uma igualdade que não inviabiliza que cada indivíduo desenvolva sua singularidade.

A grande dificuldade do jogo está em que o conceito de democracia se refere menos a uma realidade e mais a uma expectativa. Mas qual? Ou as pessoas sentem que a democracia é importante para a vida delas — colocamos, em ato, como primeiro ponto da construção democrática que ninguém será deixado de lado —, ou é tolice imaginar que as pessoas se mobilizarão por ela. 

A reconquista do regime democrático, que iniciamos com o fim da ditadura militar, está claramente ameaçada, e pelos mesmos personagens de ontem: militares, empresários e setores mais conservadores da sociedade. A ameaça de agora, porém, não está ocorrendo por meio de uma ruptura, como em 64, mas por meio da mobilização de parte (ainda) importante da população contra as instituições da democracia. Se nosso regime democrático se apresentou presa fácil de um projeto autoritário filofascista, a razão está em termos caminhado pouco no estabelecimento de uma sociedade democrática. 

Como pedir que pessoas que têm direitos básicos constantemente violados se mobilizem pelo Estado de direito? Defender a democracia não pode ser a mera defesa do atual estado de coisas — no nosso caso, do estado de coisas anterior ao terror a que estamos submetidos. É preciso aprofundar a democracia, o que se faz com políticas públicas — políticas públicas que não apenas combatam a desigualdade, mas que fomentem e permitam a consolidação de um espaço comum, isto é, de uma cultura política democrática que dê sentido às instituições. 

Afinal, a experiência da democracia não é, não pode ser, a experiência da exclusão, do desamparo, da violência. Dos partidos e lideranças políticas com compromisso democrático, espera-se mais: espera-se que sejam capazes de deixar de lado divergências, se é que querem continuar podendo divergir no futuro.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Daniel Peres

Daniel Tourinho Peres é professor do departamento de Filosofia da UFBA, autor de Kant: Metafísica e Política (Unesp, 2004) e de artigos sobre filosofia e teoria política. 

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.