Literatura,

Um Macunaíma britânico

Professor universitário frustrado é protagonista de sátira que explora tensão entre igualitarismo e tradicionalismo na Inglaterra

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Não é preciso ser pessimista para perceber que a vida de Jim Dixon (o “sortudo” do título deste romance) se encaminha para um mau desfecho. 

Com menos de trinta anos, ele se arrasta na rotina de uma universidade inglesa de segunda categoria, mal e mal preparando suas aulas sobre história da Idade Média, assunto pelo qual não tem nenhum interesse. Como está em período de experiência na instituição, precisa mostrar-se subserviente ao titular da disciplina. O professor Welch é uma espécie de pateta desatento e digressivo, com pretensões culturais que Jim despreza.

Publicado em 1954, Lucky Jim é o primeiro e mais bem-sucedido romance de Kingsley Amis (1922-95). Como seu amigo, o poeta Philip Larkin (1922-85), a quem o livro é dedicado, Amis ilustra o sentimento de revolta e tédio que acometeu a Inglaterra entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a explosão cultural dos anos 1960. 

No teatro, os angry young men (John Osborne, Alan Sillitoe) exprimiam a impaciência de uma geração que, beneficiada pelo acesso mais fácil às universidades e pelo maior igualitarismo social promovido pelos governos trabalhistas, ressentia-se ao mesmo tempo da permanência das distinções e preconceitos do tradicional sistema de classes britânico.

Na irritação de Jim diante do gosto musical do velho Welch — madrigais renascentistas e concertos de flauta doce — e, mais ainda, com relação aos modismos de linguagem do filho deste, o pretensioso artista plástico Bertrand, pode-se ver um traço anti-intelectualista que tanto Kingsley Amis quanto Philip Larkin terminariam por fazer descambar em incorreção política e reacionarismo durante a era Thatcher. 

Na época de Lucky Jim, entretanto, é o direitismo do parasita Bertrand — politicamente favorável aos milionários e aristocratas que, espera, financiarão sua carreira artística — um dos principais alvos da acidez de Amis.

Pioneiro no gênero da campus novel — romance que se passa dentro dos muros de uma comunidade universitária —, Lucky Jim é sobretudo uma sátira, em que as diversas trapalhadas alcoólicas de seu protagonista respondem por cenas engraçadas e simpáticas.

Toda a raiva de Jim Dixon contra o establishment acadêmico não o desculpa de sua evidente má vontade com relação ao ofício que escolheu, de uma irresponsabilidade assustadora para com alunos e colegas, e de não poucas delinquências de médio porte. 

Os primeiros capítulos impõem, assim, um tom de caricatura a todos os personagens, sem que o autor queira despertar simpatias por ninguém. 

Felizmente, Lucky Jim é mais do que isso. Inicialmente resignado a um possível casamento com Margaret Peel, uma colega mais velha e sem atrativos, Jim se envolve com outra jovem, Christine, que para seu azar está praticamente noiva do odioso Bertrand. 
 

Sorte e privilégios

Os acontecimentos se dão, em regra, contra a vontade de Jim; a dificuldade inglesa de expressar os próprios sentimentos se associa à consciência de que, dados seus talentos medíocres e origem social, o futuro que lhe foi reservado não permite maiores aspirações. 

Numa sociedade de privilégios — Bertrand tem “direito” ao sucesso erótico e profissional —, Jim poderia representar o herói “meritocrático”, ao estilo Margaret Thatcher. A primeira-ministra, como se sabe, ascendeu à liderança do Partido Conservador vencendo os preconceitos de seus colegas, que não esqueciam a circunstância de se tratar da filha de um quitandeiro. 

Mas é o contrário. Espécie de Macunaíma britânico, sem méritos nem força de vontade, Jim Dixon esgueira-se por uma fresta entre o privilégio aristocrático e a diligência burguesa. 

É uma fresta quase mágica, em que um ou dois personagens assumem, em chave cômica, o papel da Sociedade da Torre, a organização que favorecia, nos subterrâneos, a carreira do herói no clássico romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

No livro de Kingsley Amis, a “sorte” de Jim tem sinônimo: ser amado. Sobretudo, ser amado sem saber, ou sem se considerar digno disso. O próprio desenvolvimento do enredo produz, no leitor, um efeito equivalente.

Passamos a gostar mais do livro e de seus personagens; a caricatura se dissolve, e o âmbito inicialmente restrito das preocupações críticas do autor se alarga em simpatia humana.

É a personagem de Christine  — não tão privilegiada e inalcançável quanto Jim pensava à primeira vista — quem promete operar o milagre. Ela “era mesmo mais simpática e bonita que Margaret”, diz o narrador, “e todas as deduções que poderiam ser feitas desse fato deviam ser feitas: eram infinitas as formas pelas quais as coisas boas são melhores do que as ruins”. 

Quando as coisas ficam malparadas com Christine, o raciocínio de Jim se desdobra. “Tudo que se podia dizer com certa lógica é que Christine tinha sorte em ser tão bonita. Era de sorte que se precisava o tempo todo. Com um pouquinho mais de sorte, ele teria sido capaz de transferir sua vida para um trilho que momentaneamente se juntara àquele que vinha trafegando, mas logo se afastaria.”

O fundo melancólico dessas considerações tem implicações políticas. Se os angry young men se revoltaram contra os que, na Inglaterra de 1950, resistiam ao impulso igualitário do Partido Trabalhista, o romance de Amis introduz um novo tema no mal-estar.

A pura sorte — de ter nascido bonito ou inteligente, por exemplo — seria um fator irredutível de desigualdade e privilégio, a despeito dos esforços pretendidos em favor da justiça social. Ainda que pareça concordar com isso, Lucky Jim ainda não aponta para as convicções francamente reacionárias que Amis assumiria mais tarde.

Jim é encarregado pelo professor de dar uma palestra sobre a Merry Old England, termo que a boa tradução de Jorio Dauster esclarece em nota no fim do livro. O tema, pelo que sugere de idealização da Idade Média, é estimado pelo convencionalismo antiliberal. 

Embora não tão engraçado, o capítulo dedicado à malograda palestra funciona como um desabafo cômico, e afinal benigno, para um sentimento que a geração de Amis expressaria com mais amargura em outras ocasiões.

“Benigno” talvez seja mesmo o termo mais adequado para qualificar esta obra, paradoxalmente tão virtuosística na caricatura e na maledicência. Como Jim, sua carga de desilusão tem muito de inocente, e seu impulso crítico traz um frescor de meninice. Impossível não amá-lo.  

Quem escreveu esse texto

Marcelo Coelho

Sociólogo e jornalista, é autor de Tempo medido (Publifolha) e Patópolis (Iluminuras).

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.