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Sobre santos e loucos

Mostrando tragédia da seca, trabalho escravo e concentração de terras, 'Os sertões' ainda reflete o Brasil atual

06jul2019

Tive a sorte de ler Os sertões aos dezessete anos, graças a uma professora de português do Fernão Dias, um bom colégio público de São Paulo (em 1970), apesar da restrição dos horários de aula — para aproveitar melhor as escolas existentes, os governos militares haviam decretado quatro turnos de três horas e meia de aula por dia. Tempo exíguo, professores exaustos. A ditadura impunha restrições ao ensino, claro, mas essas não tinham a ver com a atual lógica dos “direitos do consumidor” que norteiam (com raras exceções) a relação entre professores e alunos — ou melhor: entre os donos das escolas e os pagantes. De todo modo, essa professora, de cujo nome infelizmente me esqueci, nos mandou ler Euclides da Cunha. Apostou alto na capacidade dos secundaristas.

Apesar da aridez do tema e da pretensão científica do autor, a escrita límpida de Euclides da Cunha facilitou a leitura para os poucos adolescentes interessados. A saga dos seguidores de Antônio Conselheiro, o fracasso das duas primeiras expedições militares que tentaram combater o grupo de fanáticos religiosos, a resistência dos últimos sobreviventes — tudo me impressionou.

Devo avisar que tive um avô eugenista. Assim, não me eram estranhas certas observações de Euclides sobre a superioridade de uma “raça” frente a outras, consideradas degeneradas ou inferiores. Mas graças ao descrédito que minha avó dedicava a tais ideias, não levei as teorias raciais a sério. Por outro lado, desconhecia o drama das lutas pela terra no Brasil.

Releio Euclides agora na nova edição do Sesc/Editora Ubu (2016), por ocasião do centenário da obra. Que epopeia magnífica. E que história horrenda, como horrendas foram a colonização portuguesa e a elite que se formou a partir dela. Trezentos anos de escravidão; fomos o último país que não era uma colônia a abolir essa barbárie. Em 1865, o Império português promoveu, sob Pedro 2º, a carnificina que foi a Guerra do Paraguai, criando para os cofres públicos um déficit onze vezes maior do que o orçamento governamental para 1864. A campanha, que prometia ser fácil, foi uma carnificina. Em 1868, o próprio Duque de Caxias defendeu o fim do conflito — que se acirrou no ano seguinte. Em 1870, o exército contabilizava quase 24 mil perdas, entre mortos, feridos e desaparecidos. Os escravos enviados ao campo de batalha sob promessa de alforria foram enganados; a abolição só viria onze anos depois.

Uma abolição, como se sabe, que não concedeu aos descendentes de africanos recém-libertos nenhum recurso que lhes permitisse iniciar com dignidade a nova vida. Foram jogados nas ruas e estradas, sem reparação, sem acesso a um pedaço de terra, e — a maioria — sem trabalho. O senhor de terras, que explorava gratuitamente quinhentos ou 2 mil africanos, ao se ver obrigado a pagar pelo trabalho, preferiu explorar à exaustão um terço deles e mandar o “resto” perambular pelas estradas, mendigar e roubar nas cidades, trabalhar em troca de comida, sem direitos, sem garantias. Assim nasceu a associação racista entre “negro” e “vagabundo”. Mas assim nasceram também, na vertente oposta, os terreiros de candomblé e o samba, até hoje uma das mais ricas expressões da cultura brasileira. Não prossigo: nosso tema é outro

Em 1896, a República recém-inaugurada enfrenta o “cancro monarquista” (nas palavras do autor de Os sertões) do movimento religioso de Canudos, no sertão da Bahia. No ano seguinte, o jornalista Euclides da Cunha foi enviado àquela “paragem impressionadora” para cobrir o conflito, seguro de que seria fácil para o exército derrotar o miserável bando de “fanáticos”. Errou. A guerra durou mais de um ano, depois de duas derrotas das forças do exército imperial.


Igreja de Santo Antônio (velha) (1897) [Flávio de Barros]

O martírio da terra

A escrita de Euclides é a um tempo clara e pomposa; a crítica literária do século 20 o considera, no mínimo, “careta”, comparado a seu contemporâneo Machado de Assis. Nem tanto. A parte inicial de Os sertões, dedicada a descrever a região do conflito, deveria ser chata — mas não é. Euclides faz suspense com a geografia: “E o observador que seguindo esse itinerário deixa as paragens em que se revezam […] a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido…/ Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte”. Leva o leitor a apiedar-se do esforço das árvores do sertão para sobreviver na seca, pois as considera comovedoras. Descreve a chegada das primeiras chuvas como uma apoteose.

Então, entramos na segunda parte, em que o autor descreve o sertanejo. Admite que seja “antes de tudo, um forte” — mas não o poupa de considerações sobre a inferioridade da raça, o tipo “pardo” brasileiro, vindo de “cruzamentos sucessivos do mulato, do cariboca e do cafuz”. E lamenta-se: “Não temos unidade de raça. Não a teremos nunca […] A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos”. Aqui, civilização equivale ao branqueamento da população. Já Antônio Conselheiro, o líder religioso “monstruoso, mas autômato […] condensava o obscurantismo de três raças”. Euclides não o afirma, mas sua lógica conduz a pensar que tal evolução social custaria, por certo, o extermínio das raças inferiores. Não é fácil para a sensibilidade do leitor contemporâneo ler barbaridades como essas.

É possível perceber a permanência da tremenda desigualdade social brasileira e uma observação desesperada sobre a concentração de terras e a luta contra a miséria

Os melhores críticos literários do Brasil, de Antonio Candido a Walnice Nogueira Galvão, passando por Franklin de Oliveira, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Antonio Houaiss — só para citar alguns — comentam o livro, ao final dessa nova edição. Candido elogia a genialidade de Euclides, mas observa que o autor baseou sua análise do sertanejo “no arsenal rapidamente envelhecido da escola antropológica italiana […] Não percebeu que Canudos, em vez de representar apenas um fenômeno patológico […] significava também, se não principalmente, desesperada tentativa no sentido de uma nova organização social, uma solução que reforçasse a coesão grupal ameaçada pela interferência urbana”. Hoje é possível ao leitor atento à permanência da tremenda desigualdade social brasileira perceber que o relato de Euclides da Cunha traz embutido, independente das intenções do autor, uma observação desesperada sobre a concentração de terras e a luta contra a miséria à época da primeira República. Como produz ainda hoje sob a bandeira do agronegócio.

Por isso, Os sertões ainda representa o Brasil. A epopeia dos fanáticos seguidores de Antônio Conselheiro resume não só a tragédia “natural” da seca e da fome, mas também a da exploração do trabalho escravo, da concentração de terras em mãos de latifundiários e do abandono do interior do Brasil pelas políticas públicas.

Para Euclides, “o martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida. Nasce do martírio secular da Terra…”. Não lhe ocorria que o martírio do homem fosse reflexo da ação de outros homens. Os que se apropriam da terra em grandes extensões, expulsando as famílias de posseiros. Os que exploram a terra até a exaustão, derrubando a mata e secando as nascentes dos rios. Essas ações provocam o martírio da fome e dos retirantes que deixam atrás de si suas terras, a ser ocupadas pelo latifúndio. Euclides não cogita que o martírio da terra não possa ser nada além de algo “natural”.


Prisão de jagunços pela Cavalaria (1897) [Flávio de Barros]

Fragilidade e bravura

E também não abandona, ao longo do livro, suas convicções a respeito da superioridade da raça branca sobre as outras — cujo último degrau é ocupado pelos mestiços de todos os tipos. Mas se rende, aos poucos, à admiração diante da ousadia, da tenacidade e, também, da esperteza dos seguidores de Antônio Conselheiro. Tenacidade digna de mártires cristãos; esperteza e ousadia dignas do pequeno herói de histórias populares, Pedro Malazarte –, além de um completo domínio do sertão hostil e dos parcos recursos que este oferece para a sobrevivência humana. O sertão é aliado dos jagunços nas duas primeiras batalhas; ele lhes dá (parcamente) de comer, ele lhes atenua a sede com recursos que os soldados desconhecem. Ele lhes indica caminhos. É possível também que o convívio diário com as dificuldades da vida no sertão tenha contribuído para fazer do sertanejo não apenas um “forte”, mas um sujeito capaz de improvisar sua sobrevivência com requintes de astúcia. A mesma que os ajudou a desenvolver uma verdadeira guerra de guerrilhas capaz de derrotar duas expedições militares, espantadas e indefesas diante do inimigo invisível que os atacava de surpresa. Às vezes, Euclides se indigna diante da brutalidade do aparato mobilizado pelo exército para combater compatriotas; outras vezes, se apieda da ingenuidade dos militares, tantas vezes feitos de bobos pela esquálida trupe de Antônio Conselheiro.

Só essa mistura de tenacidade fanática e esperteza adquirida no enfrentamento diário com a aridez e a miséria explica a resistência dos devotos de Conselheiro frente o cerco militar à vila de Canudos. Aos poucos, Euclides passa a admirá-los. Aos poucos, comove-se diante da mistura inesperada de fragilidade e bravura. Aos poucos, passa a se indignar diante da futilidade daquela empreitada: que perigo representavam para a República aqueles pobres devotos de um pobre maluco? Apieda-se também dos pobres soldadinhos, adolescentes enviados a “morrer sem razão” numa guerra sem sentido.

Um último golpe de astúcia ainda abateu os soldados: Antonio Beato, o Beatinho, se oferece como negociador e condiciona a rendição dos jagunços à retirada das mulheres, velhos e crianças dos escombros de Canudos. A disposição guerreira dos soldados arrefeceu diante do desfile de “uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro do que o das trincheiras em fogo”.

Por fim o pesado aparato militar, tantas vezes ridicularizado ante a guerra de guerrilha dos jagunços, tantas vezes impeditivos da agilidade das tropas, tantas vezes inútil, acaba por cumprir sua função. Canudos é bombardeado, o casario em ruínas incendiado. Em um dia, noventa bombas de dinamite foram lançadas contra os últimos resistentes. E quantos seriam estes a disparar tantos tiros e matar tantos soldados? Eram sete, os resistentes.

Terminamos a leitura com a descrição da cabeça desenterrada de Antônio Conselheiro, exemplarmente decepada — “único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra!” — e exibida pelas vilas do litoral por onde passava a expedição, para o delírio das multidões — como viria a ser, três décadas mais tarde, a cabeça de Lampião. E que, para o autor, deveria ser examinada pela ciência. Pois ele está convicto de que ali se esconde “as linhas essenciais do crime e da loucura” — que não estaria na revolta e na desesperança produzida diante da miséria e do abandono social. E invoca, no último capítulo de uma só frase, a falta de um cientista brasileiro que se equiparasse ao psiquiatra inglês Henry Maudsley (autor do conceito de sociopatia) para explicar “as loucuras e os crimes das nacionalidades…”.

Voltemos duzentas páginas para explicar a função daquela barbárie: “É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da República”. Como estivera, no Paraguai, a sorte do Império.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.