Literatura estrangeira,

Silvina Ocampo sai das sombras

Livro de contos traz pela primeira vez ao Brasil o mundo cruel e a sexualidade perversa da escritora argentina

01out2019 | Edição #27 out.2019

A vida de Silvina Ocampo pertence a um mundo que não existe mais, um mundo perdido. Nascida em 28 de julho de 1903, era a filha mais nova de uma família aristocrática da oligarquia argentina, proprietária de terras e de negócios relacionados à exportação de produtos vindos de suas grandes estâncias. Nunca frequentou a escola, pois a família educou as cinco filhas em casa, com tutoras. As aulas eram dadas em francês, e as meninas também aprendiam inglês, italiano e espanhol — este último não era exatamente uma prioridade. Ocampo escrevia em inglês, porque a gramática do espanhol lhe parecia “impossível”. É irônico e ao mesmo tempo incrível que a maior escritora da Argentina e uma das autoras mais importantes da língua castelhana tenha aprendido o idioma que dominaria como ninguém relativamente tarde e com dificuldade.

A vida dessa menina rica estava repleta de excepcionalidades: a família viajava todos os anos de navio para a França, quando uma vaca era embarcada para que as filhas tomassem leite fresco; vivia quase isolada em uma mansão a vinte quilômetros da cidade de Buenos Aires, na magnífica Villa Ocampo, com um parque que chegava até o rio da Prata. Nesse ambiente privilegiado, Ocampo estava sempre inquieta. Uma vez disse que, por ser a irmã menor, se considerava “a et cetera da família”: por um lado, sofria com essa suposta indiferença, mas, por outro, a falta de controle familiar lhe dava uma liberdade diferente e a capacidade de explorar mundos que, a princípio, lhe eram distantes.

Desde pequena, era fascinada pelo subalterno e pelo marginal: tinha uma relação próxima com os empregados da casa, era apaixonada pela forma de falar das pessoas “comuns” e, aos poucos, foi deixando de lado seus deveres como mulher de classe alta. Silvina Ocampo nunca foi a coquetéis, não organizava jantares  nem frequentava eventos de caridade. Quando voltou de uma estada em Paris — para onde viajou para estudar pintura com Giorgio De Chirico —, decidiu se dedicar exclusivamente à literatura.

Ela se uniu ao grupo que orbitava em torno da revista Sur, dirigida por sua irmã Victoria, talvez a mulher mais influente no mundo cultural de língua hispânica na primeira metade do século 20. No grupo Sur estavam Jorge Luis Borges e seu amigo Adolfo Bioy Casares, um escritor jovem e bonito, também milionário — e que logo se tornou o marido de Silvina.

O casamento foi um pequeno escândalo na época, porque ela era onze anos mais velha que ele, e porque se casaram sem fazer nenhum tipo de cerimônia, em um cartório próximo da propriedade dos Bioy Casares na província de Buenos Aires, sem festa nem pompa e sem anúncios na imprensa oficial. Borges, o melhor amigo do casal, foi o padrinho.

Apesar de sua posição estratégica no mundo literário argentino, Ocampo se movimentava nos bastidores. Preferia a discrição. Durante sua vida e desde sua morte, em 1993, os mitos sobre sua figura são numerosos e variados: fala-se da fascinação encantatória que exercia sobre os outros, do seu comportamento de reclusa, da sua capacidade de vidência e do segredo em torno da sua vida privada e da sua sexualidade, especialmente das relações com outras mulheres, dentre as quais a mais famosa foi com a poeta Alejandra Pizarnik, que lhe dedicou poemas e cartas desesperadas. Nenhum desses boatos e lendas pode ser confirmado ou negado.

Ela cultivou a ambiguidade e escolheu as sombras, em particular a do seu enorme apartamento úmido no elegante bairro da Recoleta. Claro que, pelo fato de ser irmã de Victoria (a melhor amiga de Borges) e mulher de Bioy Casares, sua personalidade ficou um tanto ofuscada, em segundo plano. Não teria, por acaso, decidido ficar nessa posição secundária? Ou ela se acomodou a esse papel coadjuvante com rara inteligência?

Ocampo não guardou um diário, e suas cartas, com poucas exceções, não se tornaram públicas: em uma das poucas que são conhecidas, diz a um amigo que gostaria de ser uma escritora popular, que seus livros de contos fossem vendidos em quiosques de revistas, que fosse lida pela população. Mas ela mesma não se esforçava para chamar a atenção para sua literatura: demorava meses para dar uma entrevista, só aceitava responder perguntas por escrito e, às vezes, se negava a receber jornalistas. Não ia a eventos literários nem sociais. Nunca trabalhou fora da literatura, nem ao menos como resenhista — não precisava de dinheiro. Não participou de nenhuma atividade política nem assumiu um cargo público. Nunca viajou de avião nem participou de congressos.

Disfarçada de si mesma

Ao visitar sua casa de campo, caminhava pelo acostamento da estrada com seus sapatos vermelhos baratos. Não cozinhava nem comia em restaurantes ou em bares. Nas fotos de adulta, sempre parecia estar com um ar de desgosto, oculta por trás dos seus óculos escuros de armação branca, que nunca abandonava, vestida com roupa de homem e gargantilha ou casaco de pele; com frequência, levantava a mão para interromper o fotógrafo ou esconder o rosto. Ocampo se escondia. E sua escrita tem um perfume úmido, de musgo e fuligem, de segredo.“Não sou sociável, sou íntima”, dizia.

Em seu primeiro livro, Viaje olvidado [Viagem esquecida], de 1937, há um ambiente lúgubre e recordações de infância violentas e traumáticas. A morte de uma das suas irmãs. Uma empregada doméstica que assassina a filha da patroa. Uma violação em primeira pessoa: a menina é sequestrada e lançada sobre uma cama suja. Sua irmã Victoria resenhou esse livro na revista Sur e não entendeu a obra: “Eu me vi pela primeira vez na presença de um fenômeno singular e significativo: a aparição de uma pessoa disfarçada de si mesma”, escreveu, com uma fúria contida. Um livro assim, que manipulava as lembranças, uma autobiografia retorcida e surrealista, não era habitual naquela época. Até então, não havia nada parecido: estava à frente do seu tempo.

Publicou seu segundo livro onze anos depois de Viaje olvidado, logo após completar 45 anos. A autobiografia Irene (1948) é uma coleção de relatos mais convencional, especialmente em contos como “O impostor”, uma excelente variação borgiana que brinca com o tema do duplo. A impressão é de que Silvina Ocampo estava buscando a própria voz. Entre o surrealismo e a simetria dos contos borgianos, entre o realismo e um fantástico deslocado, a busca ainda não havia atingido a alquimia, esse momento em que um escritor está em pleno controle dos seus poderes.

Crueldade

A voz de Silvina Ocampo é irônica, lírica, meio demente, tão diferente que “não encontro antecessores, parece ter sido influenciada por si mesma”, declarou Bioy Casares sobre os relatos deslumbrantes de A fúria, publicado originalmente em 1959. É o livro em que seu universo foi claramente delineado, é o mais “ocampiano”: a crueldade, os personagens femininos, uma linguagem infectada de estereótipos, ambientações piegas e sobrecarregadas, uma sexualidade perversa e, por vezes, mórbida.

A fúria abre com o elegantíssimo e autobiográfico “A lebre dourada”, quase uma fábula, uma história que segue a estrutura de um desenho num tapete em uma estância dos pampas. Em seguida, muda de tom, de modo drástico e brutal, com “A continuação”, um conto narrado por uma escritora que envia uma carta ao marido; o tom é de uma raiva velada e de despeito, logo se tornando um labirinto metatextual, em que a vida da autora se confunde com o próprio conto que está escrevendo (cujo narrador é um homem). É a primeira vez que Ocampo brinca com identidade de gênero, trocando e dissipando  fronteiras, não sabendo se é homem ou mulher; também é a primeira vez que aparece um triângulo amoroso, e o ciúme irrompe como um dos seus grandes temas.

“Meu amor adquiriu os sintomas de uma loucura. Tinha eu razão em me afligir porque você de fato me enganou? Essas coisas a gente descobre quando é tarde demais, quando deixamos de ser nós mesmos. Eu te amava como se você me pertencesse, sem me lembrar de que ninguém pertence a ninguém, de que possuir algo, qualquer coisa, é um sofrimento vão.” A mulher que poderia ser a amante se chama Elena, como a verdadeira amante de Bioy Casares nessa época, Elena Garro. É um conto de amor, loucura e desprezo; o jogo de identidades e de metatexto lembra Julio Cortázar, principalmente pela tensão e pelo realismo do casal que ama se odiar.

Há outros contos fundamentais em A fúria. “A casa de açúcar” traz casais e vidas alternativas: trata-se da metamorfose da protagonista Cristina — mulher supersticiosa que vive resguardada pelo amor de seu marido e do aconchego da casinha kitsch onde vive — em Violeta, uma antiga habitante da mesma casa, que morreu louca. A metamorfose é outro tema favorito da escritora argentina.

Em A fúria estão também os seus contos mais cruéis. “A casa dos relógios”, por exemplo, é sobre um grupo de homens que, ao ficarem bêbados em uma festa, colocam a corcunda de um relojoeiro sob o ferro de passar roupa em uma tinturaria. “O porão” é protagonizado por uma mulher, possivelmente uma prostituta, que vive com ratos em uma casa que está a ponto de ser demolida, enquanto “Mimoso” e “As fotografias” são contos de ouvido absoluto. É que Ocampo, diferentemente de Borges e Bioy Casares, e mais próxima de Cortázar e Manuel Puig, incorporou em seus contos a fala coloquial rio-platense. Segundo a pesquisadora argentina Noemí Ulla (1940-2016): “Com Cortázar, foram os dois que iniciaram e aceitaram uma língua mais sensível no coloquial. O fato é que Cortázar era mais conhecido, então, a atualização do idioma e a oralidade foram atribuídas a ele. Não se reparava muito em Silvina, porque não era tão lida”.

Onde situar essa mulher que trabalhava com tanta ironia e tanta precisão os lugares-comuns, a fala irrefletida de uma classe que não era a sua e com a qual apenas esbarrava na vida cotidiana? São essas vozes que provocam um riso que deforma o rosto no terrível “As fotografias”. Há uma festa no pátio da casa de uma família de classe média baixa. É o dia do aniversário de Adriana, uma adolescente que ficou tetraplégica depois de um acidente e que acaba de sair do hospital. Por causa de tantas festas, de tanto excesso, de tanto fazê-la posar para fotos, seus parentes e amigos a matam. As descrições são de uma crueldade inocente, perversa. Na terceira fotografia, “Adriana brandia a faca para cortar um bolo que tinha seu nome, a data de seu aniversário e a palavra felicidade
escritos com merengue rosado, salpicado de jujubas.
‘— Ela tinha que ficar de pé — disseram os convidados.
‘A tia objetou:
‘— E se os pés saírem mal?
‘— Não se preocupe — respondeu o amável Spirito —, se não ficarem bem, depois eu corto”.

Inventário do trivial

“Mimoso” é um dos contos mais extremos da literatura argentina. Borges o odiava: sempre pedia a Ocampo que nunca o incluísse nas antologias dela. Mimoso é um cachorro amado com loucura por sua dona, que manda embalsamá-lo quando o animal morre. Há algo de insano no afeto pelo bicho de estimação (“Acariciou sua cabeça com a ponta dos dedos e quando pensou que o marido não estava vendo, lhe deu um beijo furtivo”). É tão óbvio o amor bestial da mulher que o marido recebe um bilhete anônimo denunciando as ações da mulher; ele, então, destrói o cachorro. Ela grita: “Você não pode me impedir de sonhar com ele”. O erotismo sombrio e o humor chegam ao limite em “Mimoso”.

Outro conto notável, porque fala da questão das classes sociais, é “O vestido de veludo”: uma mulher rica morre estrangulada pelo seu vestido em meio às provas da roupa ajustada pela modista, enquanto uma garota que acompanha a costureira repete sem parar: “Que divertido!”.

São abundantes os contos sobre como as crianças são malignas: a história que dá título ao livro, “A fúria”, é sobre uma menina que coloca fogo em sua amiga, que morre em seguida; em “O casamento”, uma garota de sete anos enfia uma aranha venenosa no coque da vizinha que vai se casar; em “Voz ao telefone”, um garoto põe fogo na própria mãe e nas amigas dela enquanto conversam sobre roupas íntimas e tiram medidas do corpo umas das outras; em “A oração”, uma mulher esconde em sua casa um menino assassino, que acaba de afogar um companheiro de brincadeiras em uma poça de lama.

Surgem vários contos sobre obsessões sexuais, como “A paciente e o médico” e o relato lésbico transbordante de “Carta perdida em uma gaveta”: “Faz quanto tempo que não penso em outra coisa a não ser em você, imbecil?, você, que se intromete nas linhas do livro que leio, na música que escuto, dentro dos objetos que vejo”.

A acumulação de temas e objetos presente em A fúria é um aspecto fundamental da narrativa de Silvina Ocampo. Segundo a crítica e escritora Sylvia Molloy: “Os títulos dos contos são como peças de um estranho inventário ou de um desvio em que se acumulam coisas sem tom nem som: as fotografias, a propriedade, o casamento, a pedra, os objetos, o asco, o grifo, a boneca, a rede. Os inventários de Silvina Ocampo são inquietantes  porque misturam sem hierarquizar o alto e o baixo, o catastrófico e o trivial, o prestigioso e o vulgar em um plano que se quer democrático. Frequentemente, fala-se da sua crueldade. Mas gostaria de ressaltar sua simpatia e cumplicidade. Poucos como ela cultivaram o detalhe trivial com tanto êxito, detendo-se nas manias pequenas, nas mesquinharias, nos exageros do mundo.”

É possível que, naquela época, ninguém tenha sabido muito bem o que fazer com esse livro maravilhoso e estranho. Não chamou muito a atenção quando foi publicado. A obra de Ocampo era lida e resenhada, mas, em comparação aos seus contemporâneos e levando em conta que seu círculo íntimo era a nata do poder literário latino-americano, passava bem despercebida. Ser quase uma escritora secreta lhe dava, sem dúvida, uma enorme liberdade. Quando não tinha ninguém observando, era possível ser o que ela quisesse. E foi assim pelo resto da vida: jamais renunciou a suas obsessões, nem ao seu estilo ou aos seus gostos.

Silvina Ocampo escreveu até o final, mesmo quando estava com mal de Alzheimer. Escrevia em guardanapos, bilhetes, receitas médicas. Seu último livro, Cornelia frente al espejo, foi publicado em 1988, quanto tinha 85 anos. Morreu em 1993. A redescoberta de sua obra, especialmente nas esferas acadêmicas, aconteceu logo depois. Mesmo que tenha sempre sido considerada a escritora mais importante da Argentina, era pouco lida e compreendida, inclusive entre seus amigos. Borges escreveu sobre ela: “Há uma característica ali que nunca cheguei a compreender: é um amor estranho por uma certa crueldade inocente ou oblíqua”. Esperava-se algo diferente de Silvina Ocampo. Extravagância, sim, mas não essa atmosfera de crime, essa ambiguidade moral que respiram seus contos. Hoje, finalmente, encontrou seus leitores. Em nossa época, a voz de uma mulher estranha descobriu quem a escutasse. (Tradução Paula Carvalho)

Quem escreveu esse texto

Mariana Enriquez

Escreveu As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.