Literatura,

Sexo e castigo

Romance esquecido é resgatado em edição que sublinha seu interesse histórico

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Fantina passou praticamente despercebido quando saiu, em 1881, e permaneceu na sombra desde então. O ostracismo deve-se em parte à coincidência de sua publicação com a de dois romances que seriam consagrados como marcos iniciais do realismo e do naturalismo no Brasil. Foi esse o ano da publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, recebido com perplexidade, e de O mulato, de Aluísio Azevedo, grande sensação daquela safra.

Diga-se logo de início que essa única obra de ficção do bacharel em direito e futuro político Francisco Coelho Duarte Badaró está longe de ter o fôlego e a complexidade dos romances de Machado de Assis e Aluísio Azevedo. Mas o livro tem interesse tanto pelo que nos diz sobre o seu tempo como pelo que nos faz pensar sobre o nosso.

A publicação junta-se a outras que a Chão Editora vem desencavando dos arquivos e bibliotecas: textos sobre a escravidão e escritos de indivíduos escravizados, libertandos e libertos. O processo editorial-arqueológico lembra as escavações do cais do Valongo e do seu entorno, no centro do Rio, que há poucos anos expuseram as marcas do maior porto de desembarque de escravos nas Américas.

O livro traz também muitas marcas do período de transição em que foi escrito, como bem indica Bernardo Guimarães, que assina a carta-prefácio e certamente foi a grande referência literária de Badaró. No livro ouvem-se ecos do romance A escrava Isaura, do conto “Uma história de quilombolas” e dos versos da “Orgia dos duendes”, a certa altura entoados pelos personagens de Fantina.

Há muito do naturalismo na atmosfera da narrativa, marcada pela descrição das carnes, sempre “fartas” e “lautas”, e pelo apelo aos sentidos do leitor com referências a cheiros, calores e cores. À atmosfera sexualizada corresponde a crueza dos castigos corporais, descritos pelo narrador com um misto de indignação e sadismo. Sexo e castigo, como se verá, sempre rimam nesses quadros da escravidão.

Apesar do adiantado da hora — o ano, lembremos, era 1881 —, também há muito de romântico na escrita de Duarte Badaró, repleta de comparações com a natureza. Assim, os dias futuros são “um alegre bando de tuins sobre a cúpula do jacatiá coberto de flores azuis”, e o herói aproxima a heroína ao seu peito “como jiboia que prende o inexperto novilho à beira das lagoas”. Fantina, “mulatinha de dezoito anos inflamatórios”, tem “uns cabelos pretos e luzidios como o anum”, “e os lábios de uma carnação rubra como as tintas das auroras boreais”.

Desejo e violência

O enredo não destoa muito das convenções do tempo. A base é uma quadrilha que envolve amor, desejo e violência: a fazendeira Luzia deseja o arrivista Frederico, que por sua vez deseja a escrava Fantina, que deseja e ama o homem livre Daniel, o qual corresponde ao seu desejo e ao seu amor. O único amor correspondido não pode se consumar pela condição de Fantina, elo mais visado e vulnerável da ciranda de paixões e afetos.

Também há muito do romance de costumes, com descrições dos tipos humanos, danças, cantigas, rezas, superstições, feitiçarias, o que faz deste livro tão despretensioso uma fonte documental extraordinária. O interesse histórico fica claro. O alentado posfácio de Sidney Chalhoub nos informa, por exemplo, da sustentação legal e da plausibilidade histórica dos atos bárbaros que movem os quadros da escravidão de Duarte Badaró. Os direitos reservados aos escravizados limitavam-se basicamente à conservação e integridade de seu corpo; entretanto, ficamos sabendo que atos de violência sexual nem sempre eram considerados atentados contra a integridade física do indivíduo escravizado.

Como em tantas outras histórias do período, o corpo da escrava é o foco da fixação senhorial. O que surpreende em Fantina é a afirmação do desejo sexual da senhora, que domina o primeiro capítulo e põe em movimento a engrenagem violenta da novela. Depois de quatro anos de viuvez e movida por “ímpetos da mocidade”,  a próspera fazendeira de quarenta anos quer se casar novamente. Ela enfrenta a oposição das filhas, que a recriminam, expressando o preconceito social em relação ao desejo da mulher mais velha. Luzia não deixa por menos e responde com “palavrões de arromba”. Assim, ainda que inadvertidamente, o livro sugere que a violência sobre os escravos, legal e socialmente sancionada, refluía também sobre a vida íntima dos senhores e senhoras. Acossada por Frederico, seu novo senhor, Fantina torna-se alvo da ira de Luzia e pivô da derrocada de sua senhora.

Assim, é a volúpia da fazendeira, grande vilã da história, que abre a temporada de desgraças que recaem sobre as principais personagens femininas — Luzia, Rosa, Fantina e sua filha, Júlia. Fruto do estupro cometido por Frederico, a “criança débil e clorótica” é a principal sobrevivente da história, em situação degradante. O destino da personagem brasileira segue o da Fantine francesa, uma das miseráveis de Victor Hugo, mãe solteira que se prostitui para sustentar a filha e morre na mais profunda miséria material e moral. Entretanto, o quadro histórico é outro. Ele aqui está comandado pela lei de 28 de setembro de 1871, a famosa Lei do Ventre Livre, proposta pelo barão do Rio Branco, referido por Luzia como “o homem que queria forrar o que não era seu”.

A lei e o barão são o grande terror da fazendeira. Ao admirar os “crioulinhos que brincavam no terreiro”, vistos pelo narrador e por ela como “animais domésticos” e pejorativamente chamados de “riobrancos”, ambos surgem como grande ameaça à sua fortuna crescente, ainda que a liberdade prevista pela lei fosse lenta e gradual, quase a perder de vista.

Que uma das leis mais controversas e conhecidas de todo o século 19 brasileiro tenha ganhado fama com esse nome — Lei do Ventre Livre — já é um indicativo da questão crucial que ela tocava. Para além da reprodução, que fazia girar a economia com a multiplicação da força de trabalho e do lucro, o corpo escravizado estava no centro de uma economia doméstica e afetiva marcada pela violência.

A conjunção entre escravidão e controle do corpo feminino move o enredo de Fantina e parece continuar a mover o nosso grande enredo nos quase 140 anos decorridos desde sua primeira publicação. Esse retardo no reconhecimento de direitos fundamentais talvez não seja um mau resumo da história de um país às vésperas de completar duzentos anos de independência. 

Quem escreveu esse texto

Hélio de Seixas Guimarães

É professor livre-docente na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq.

 

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.