Literatura,

Resistir ou obedecer?

Continuação de “O conto da Aia” revela o mundo distópico de Gilead do ponto de vista de três personagens diferentes

27nov2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Antes de mais nada, Os testamentos é um livro que não existiria caso O conto da Aia não tivesse sido adaptado para a televisão como The Handmaid’s Tale. Ainda que funcione como uma continuação do romance de 1985, Os testamentos, de Margaret Atwood, incorpora contribuições vindas diretamente da série televisiva. Nesse sentido, O conto da Aia em forma de livro e série e Os testamentos formam uma espécie de trilogia. No centro da história está Gilead, a sociedade teocrática criada por Atwood nos estertores da Guerra Fria.

Não é a primeira vez que esse hibridismo entre literatura e produção visual acontece, mas talvez seja um dos mais intrigantes, uma vez que Gilead se tornou um fenômeno que transcendeu a ficção, sendo uma espécie de metáfora no mundo real das ondas conservadoras recentes. Como forma de protesto, mulheres vestidas como as Aias do romance e da série passaram a ser vistas em manifestações feministas ao redor do globo, depois que a série foi ao ar dois anos atrás, recebeu vários prêmios televisivos e ganhou mais duas temporadas.

Ficção antecipatória de tintas fortemente feministas, O conto da Aia descreve uma sociedade religiosa autoritária, fundamentalista e masculina na qual os papéis das mulheres são rigidamente estratificados, obedecendo a imperativos reprodutivos. Nesse futuro assolado por catástrofes ambientais, a taxa de fertilidade sofre uma diminuição brutal. Para os Filhos de Jacó, os fundamentalistas religiosos que tomam o poder em parte dos Estados Unidos, a queda na natalidade é consequência direta das conquistas femininas das décadas de 1960 e 1970: uso de anticoncepcionais, liberdade sexual etc.

E essa será a senha para que os destinos das mulheres sejam redefinidos em função de sua fertilidade e classe social. Esposas são as mulheres dos Comandantes, os líderes do governo religioso, e, caso sejam estéreis, a elas são designadas escravas reprodutivas, chamadas de Aias. Elas são educadas para a obediência pelas Tias, mulheres fora do jogo reprodutivo, e às Marthas resta o trabalho doméstico.

As mulheres não podem ler ou escrever e não têm ocupação fora da lógica doméstica. O estupro é ritualizado, numa Cerimônia para que os Comandantes engravidem as Aias e garantam a continuidade da espécie. Em O conto da Aia, essa trama vai se desvelando aos poucos pelas reminiscências da personagem de Offred (às Aias lhes retiram até os nomes próprios, para receber o nome do Comandante ao qual vão servir), uma Aia que consegue burlar a vigilância e gravar fitas cassete com sua história. Esse material será reencontrado por historiadores, muitos anos depois da queda de Gilead.

Como é próprio de uma sociedade autoritária, Gilead refaz a história de sua origem e pretende apagar a lembrança daquilo que veio antes. Quando Offred começa a registrar suas memórias, ela inicia uma caminhada em direção à resistência e à rebelião possível.

Segredo revelado

O conto da Aia permaneceu mais de trinta anos como uma espécie de segredo bem guardado entre feministas e fãs de ficção científica, até que a série estreasse no início de 2017 no serviço de streaming Hulu. A exuberância da representação visual e a força das interpretações, sobretudo das atrizes Elizabeth Moss (que faz Offred), Alexis Bledel (que interpreta Ofglen) e Ana Dowd (que dá vida a Tia Lydia), conferiram ao texto uma potência aterradora; o horror da violência e da repressão tomou corpo e forma. Atwood foi consultora dos roteiristas, o que garantiu, pelo menos à primeira temporada, uma adaptação ao mesmo tempo colada ao espírito do texto original e que desenvolvia determinados aspectos apenas sugeridos no livro.

Para além do sucesso de público e crítica, a versão televisiva foi capaz de galvanizar temores latentes que começaram a se espalhar entre os movimentos de mulheres. O terror distópico representado por Gilead estava muito mais próximo em 2017 do que quando o livro foi lançado, no meio dos anos 1980. A crescente influência de igrejas evangélicas neopentecostais e suas agendas conservadoras em diversos países, os violentos movimentos contra o aborto e a emergência de políticos com pautas reacionárias e antifeministas fizeram a ficção se aproximar da realidade de maneira assustadora.

Narrativa fragmentada

Em Os testamentos, esse mesmo clima de terror distópico retorna, quinze anos depois do final de O conto da Aia, mas com uma nota mais esperançosa.  Desta vez, a história se desenrola a partir de três vozes diferentes. Uma delas é na forma do diário da já conhecida Tia Lydia, que estava presente no romance anterior. As outras são dos depoimentos de duas mulheres jovens, Agnes, que vive  em Gilead, e Daisy, residente no Canadá.  Como em O conto da Aia, o ponto de vista subjetivo, ainda por cima de três personagens diferentes, confere à narrativa um sabor mais ou menos fragmentado.

Atwood se esquivou de acrescentar muitos detalhes sobre a história de Gilead, o que deve ter deixado alguns fãs mais ou menos decepcionados. Ainda não sabemos direito como vivem as Econopessoas e o que aconteceu com o resto do mundo. Sabemos, no entanto, que Gilead quer se perpetuar, mandando missionárias, as Pérolas, para outras partes do planeta a fim de atrair jovens mulheres para lá.    

A escolha de Tia Lydia como uma das protagonistas de Os testamentos certamente se deve à centralidade que a personagem assume na série e, por que não, à brilhante interpretação de Anna Dowd. Se em O conto da Aia ela aparece sob os olhos aterrorizados de Offred, Tia Lydia tem agora a oportunidade de contar sua versão: como Offred, ela é também pega de surpresa pelo golpe fundamentalista dos Filhos de Jacó, e sua metamorfose de juíza a Tia é um dos pontos altos do livro.

Por outro lado, com o depoimento de Agnes sabemos como são educadas as jovens da classe dominante de Gilead. Sem acesso à leitura e à escrita, as meninas são preparadas para se tornarem Esposas devotas e, com sorte, férteis. Agnes, no entanto, rebela-se no meio do caminho e entra para a ordem das Tias.

A voz dissonante e que oferece um contraponto é a de Daisy, a mais  jovem e criada fora das restrições de Gilead. Adolescente que vive no país vizinho, Daisy tem mais ou menos consciência do que acontece naquilo que foram os Estados Unidos — até que sua origem é revelada e ela passa a fazer parte do movimento de resistência Mayday.

Não constituirá spoiler avisar que Offred está ao mesmo tempo ausente e presente em Os testamentos, pergunta que se impõe uma vez que este se apresenta como a continuação de O conto da Aia. O que basta saber é que, mesmo sem ter lido O conto da Aia, Os testamentos funciona como um romance independente.

Controlar o feminino

A transformação de Lydia de juíza em Tia se constitui quase como uma fábula moral dos dilemas de sobrevivência numa nova ordem repressiva: resistir ou obedecer? A rebelião de Agnes, pelo horror de ser designada a uma vida de servidão ao casar ainda adolescente com um Comandante muito mais velho, é a história de tantas mulheres que arrumam maneiras de fugir à sua condição de subordinação. Daisy, adolescente jogada num turbilhão de acontecimentos, representa uma espécie de força heroica e inconsciente.

A habilidade de Atwood de mudar os tons narrativos e oferecer diversos ângulos da história é notável. Do diário escrito de uma mulher mais velha, deixado como testemunho para um leitor que ela não sabe qual é, às diferenças entre as perspectivas das vozes de Agnes e Daisy, a escritora logra fazer as três personagens terem profundidade e peso.

Claro que é Tia Lydia, como artífice de toda a trama de Os testamentos, que tem o papel político mais proeminente. E faz diferença que sua voz venha da palavra escrita, mais organizada e com vista a um leitor: “Mas existem três motivos para minha longevidade política. Em primeiro lugar, o regime precisa de mim. Eu controlo o lado feminino do empreendimento deles com um punho de ferro sob uma luva de tricô, e mantenho tudo em ordem: feito um eunuco num harém, eu estou em posição única para fazê-lo. Em segundo, sei demais sobre seus líderes — sujeira demais — e eles não sabem muito bem o que eu posso ter feito a partir disso em matéria de documentação. Se me mandarem para a forca, será que essa sujeira poderia vir a ser vazada?”.

Agnes, por sua vez, agoniza em sua impotência: “Pensei em fugir, mas como eu faria isso e aonde eu poderia ir? Eu não tinha noção de geografia: não a estudávamos na escola, já que nosso próprio bairro deveria nos bastar, e do que mais uma Esposa precisava? Eu não sabia nem de que tamanho era Gilead. Até onde ia, onde terminava? Pensando no lado prático, como eu me deslocaria, o que comeria, onde dormiria? E se eu fugisse, Deus ia me odiar? Eu não seria perseguida com toda certeza? Eu faria muita gente sofrer, como na história da Concubina Feita em Doze Pedaços?”.

Mas a candidez de Agnes e o frescor espantado com o qual Daisy vai observar Gilead também combinam com aquilo que, desde O conto da Aia, é o centro desses romances de Atwood: como contar a própria história quando a história se interrompe? Quando as referências somem? Quando a conformidade pretende substituir a individualidade?

Os testamentos, de certa forma, tenta dar respostas a essas perguntas no terreno ficcional, mesmo que a advertência inicial que parece constituir o mote de Atwood ao criar esse universo ficcional tão árido e violento esteja o tempo todo presente. Gilead pode estar na próxima esquina, mas a escritora retruca que a capacidade de pensar e agir sobre a sua própria história pode ser a chave para a mudança.

Quem escreveu esse texto

Bia Abramo

Jornalista, é autora de Aperto de mão (Conrad).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.