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Poder e consentimento

Após conquistar a internet com ‘Cat Person’, autora lança coletânea de contos sobre relações nebulosas

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

O que se passa na cabeça de uma mulher de vinte anos, Margot, quando se relaciona com um homem de 34, Robert, aparentemente fofo e inofensivo? Conhecera-o havia poucos dias, no cinema alternativo onde trabalhava como atendente na bonbonnière. Robert fez uma compra “peculiar”, segundo Margot: um saco grande de pipoca e um pacote de balas de canela. O pedido do cara rendeu a prosa inicial da paquera e a troca de contatos.

Muitas mensagens de texto e emojis — carinhas sorridentes com olhos em forma de corações — depois, vem o sexo. Os corpos não se entendem; as almas, menos ainda. O filme sai da comédia romântica para flertar com o horror psicológico. Aqui está a sustança de “Cat Person”, o relato viral da americana Kristen Roupenian publicado no site da revista New Yorker em 2017.  

“Ao ver Robert assim, numa posição tão estranha, com a barriga grande, mole, coberta de pelos, Margot pensou: ai, não.” Em tempos de fartura de nudes, a nudez, em missa de corpo presente, segue um drama. A agonia: como interromper aquele processo? Pareceria muito mimada? Ela tenta transformar a resistência em submissão. A paranoia — que diabos fazia ali? —, o nó na cabeça, a subjetividade em alta rotação (muito além da barriga grande e mole), o desejo que não engata, o pânico. Tudo pode parecer banal. Não é. 

Zeitgeist

O sucesso de “Cat Person” está ligado ao espírito do movimento #MeToo e a sua avalanche de denúncias de assédio e estupro. É uma ficção quase encomendada pela realidade. Literatura que pega a vida babando, qual um cãozinho de Pavlov, por ela. Mal algum nisso. Roupenian é muito crível como ficcionista, não apela ao didático e tem maldade suficiente para se tornar uma grande escritora.

Os personagens da autora saltam ao mundo prontos para serem julgados no tribunal da internet. Margot foi escrotinha com o fofo rapaz hipster? Robert é apenas mais um machista ordinário ou se revelou um candidato a Harvey Weinstein — o produtor de cinema acusado de abusar de várias mulheres em Hollywood? 

Apesar de alguma irregularidade aqui e ali e finais mal-ajambrados na minoria das narrativas, os outros onze contos do primeiro livro de Roupenian se sustentam, partem de situações banais e alcançam alguma ideia de espanto. A perversão erótica de “Seu safadinho” explora voyeurismo e poder nas relações amorosas. Um casal hospeda um amigo recém-separado e goza com a carência alheia. Isso não deve acabar bem. 

Em “Look at Your Game, Girl”, a autora invoca o fantasma de Charles Manson, e há um flerte com o mundo sombrio de Stephen King. “Jéssica tinha doze anos em setembro de 1993 — vinte e quatro anos depois dos assassinatos cometido pela família Manson, cinco anos depois de Hillel Slovak morrer de overdose de heroína, sete meses antes de Kurt Cobain dar um tiro na própria cabeça e três semanas antes de um homem com uma faca sequestrar Polly Klaas numa festa do pijama em Petaluma, Califórnia.” Arrojado começo de conto, não?

O sucesso de ‘Cat Person’ está ligado ao espírito do #MeToo e à avalanche de denúncias. É uma ficção quase encomendada pela realidade

A escrita de Roupenian, em grande parte da coletânea, não tem cheiro de literatura. Mas isso pode ser uma vantagem. Há um reflexo escuro e partido ao modo de alguns seriados modernos. O conto “O espelho, o balde e o velho fêmur” é exemplar dessa artimanha, mesmo que haja uma princesa que precisa se casar. Qual o problema? 

Kristen Roupenian não é assim uma nova Carson McCullers. Nem pretende ser. Ainda está a léguas, a um estirão e tanto, da conterrânea de A balada do café triste. O livro de estreia, no entanto, mostra que a autora, de 36 anos, vai além da modinha e do sururu midiático. Tem o que contar e nos faz perder o preconceito com os “fenômenos” editoriais. É uma mulher que não morde, ao contrário de uma das suas personagens mais descontroladas dessa coletânea.  

Quem escreveu esse texto

Xico Sá

Escritor, prepara o lançamento de Você é o que lê (Todavia), com Gregório Duvivier e Maria Ribeiro.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.