Literatura,

Os embalos da semana com Machado de Assis

Pesquisadora sustenta que escritor produziu mais de trezentas crônicas cuja autoria permanecia controversa

01nov2019

Em 1869, um tal de Dr. Semana, cronista da Semana Ilustrada, revista voltada à publicação de charges, caricaturas e sátiras políticas, anunciou a mudança do nome da sua coluna para “Badaladas” — em referência a uma campainha até hoje usada na sede do Senado e que era, como diz o próprio cronista, “o símbolo do parlamentarismo” e do “sistema representativo”. Logo na estreia, Dr. Semana argumentou que “cada homem deve ser do seu tempo”, e que “a [nossa] época é parlamentar”. A coluna teria então um nome mais bem-humorado e à moda do tempo. “Se a época é de campainha, por que não darei eu badaladas todas as semanas?”, pergunta o cronista, que manteve o pseudônimo.

Para a pesquisadora Sílvia Maria Azevedo, a alteração do nome da coluna do Dr. Semana veio acompanhada de outra mudança, até então não enfrentada devidamente por críticos e editores, e bem mais significativa para a história da literatura nacional: com as “Badaladas”, a coluna passava a ser assumida por Machado de Assis. Foi essa percepção de Azevedo, nascida de uma longa controvérsia da crítica machadiana em torno da autoria desses textos, que levou a pesquisadora a se debruçar durante três anos sobre o material e analisar cada uma das crônicas, ao todo mais de trezentas — a coluna duraria até 1876, quando a revista chegou ao fim. 

O resultado são dois calhamaços que acabam de ser publicados e que contam com as crônicas atribuídas a Machado, além de uma longa introdução da pesquisadora, assim como notas de rodapé explicativas, detalhados índices onomásticos e tabelas com marcas textuais que apresentam “provas” de autoria. 

História de uma controvérsia

A atribuição da autoria das “Badaladas” a Machado não chega a ser uma descoberta inteiramente nova, pois algumas crônicas já haviam aparecido nas edições em livro, como é o caso do volume das obras completas de 1938, da editora W. M. Jackson, em que foram publicados onze desses textos. Segundo Aluizio Leite, um dos editores das obras completas mais recentes do autor, que saiu em 2008 pela Nova Aguilar, a razão para incluir “várias crônicas duvidosas” foi a “vaga justificativa” de possuírem o “estilo inconfundível” de Machado. Sobre o seu trabalho como editor do Bruxo, esclarece que “foi ouvir alguns especialistas, em especial John Gledson, e depois disso, com o aval deles, seguir fielmente a bibliografia do Machado feita pelo Galante de Souza”.

José Galante de Souza foi um reconhecido estudioso de Machado que, segundo John Gledson, “todo mundo respeita porque era muito cuidadoso e cético, talvez até precavido demais”. Galante publicou, em 1955, Bibliografia de Machado de Assis, um dos guias mais seguros sobre a obra do Bruxo. 

Sobre as “Badaladas”, o próprio Galante chegou a argumentar que seria arriscado atribuí-las a Machado — “sem um exame sério e meticuloso do estilo” — por causa de um motivo principal: o pseudônimo Dr. Semana teria sido usado por diversos colaboradores do periódico, na maioria desconhecidos até hoje. A escassez, ou quase inexistência, de “provas materiais” que liguem Machado a esse grande conjunto de textos é outro fator que complica a sua identificação. 

Foi esse “exame sério e meticuloso” que Azevedo se propôs a fazer, que incluiu a “identificação de traços recorrentes em relação a temas, referências históricas, culturais e literárias, citações, recursos estilísticos”, tudo isso “cruzado com a leitura de outros textos machadianos publicados em período correspondente àquele das ‘Badaladas’, como também em época anterior e posterior às mencionadas crônicas”. 

Ela também cruzou citações, temas e personagens das “Badaladas” com outros momentos da obra machadiana. Por exemplo, a frase do visconde de Jequitinhonha, figura de destaque da política brasileira, que é citada em uma “Badalada” de 1869 — “Recolha o seu riso, Sr. Senador!” —, reaparece no conto “Ernesto de Tal”, de 1873, e na crônica “O velho Senado”, publicada na Revista Brasileira, em 1898 (quase trinta anos depois!). Essa repetição seria uma “prova” de que a tal “Badalada” foi escrita por Machado. 

Para John Gledson, a publicação dessas crônicas “é uma façanha, e importantíssima para o estudo do autor”. Ele lembra que, se todos os textos forem realmente de Machado, o número de crônicas do escritor aumentaria aproximadamente de seiscentas para novecentas. O crítico — que no momento está editando as crônicas de A Semana, de 1895 — acredita que a edição também colabora para o estudo da biografia e das opiniões políticas e até religiosas de Machado, assim como das suas fontes e do seu desenvolvimento artístico. 

Se todos os textos forem realmente de Machado, o número de crônicas do escritor aumentaria aproximadamente de seiscentas para novecentas

Lucia Granja, uma das maiores especialistas no estudo das crônicas de Machado, destaca que Badaladas  Dr. Semana é ambicioso e arriscado, pois desafia grandes nomes da crítica e outros trabalhos de fôlego e, por isso, está suscitando debates dentro da comunidade machadiana.

Mas tanto Gledson quanto Granja concordam que o livro apresenta uma base bem estabelecida e critérios consistentes para ajudar nesse julgamento. Granja acrescenta que as vantagens da tarefa são evidentes justamente “à medida que a metodologia pode ser estendida indefinidamente pela organizadora do volume e por outros estudiosos da obra machadiana, juntando-se ‘provas’ e ‘contraprovas’ da autoria”.

Aprendendo a ironia

Aos trinta anos, às vésperas do matrimônio com Carolina Augusta, com quem se casaria em novembro daquele mesmo ano de 1869, e com alguns problemas financeiros, como provam as cartas que chegou a enviar a amigos pedindo dinheiro emprestado, Machado de Assis teria assumido o pseudônimo de Dr. Semana também com o intuito de obter uma fonte extra de renda. Na ocasião, o escritor contava com um emprego modesto de ajudante do diretor no Diário Oficial e com colaborações esparsas em outro periódico, o Jornal das Famílias.

O novo nome da coluna também delimitava um assunto caríssimo ao cronista Machado: a política. De 1860 a 1861, aos vinte e poucos anos, o escritor atuou como uma espécie de repórter de política do Diário do Rio de Janeiro, quando assistia às maçantes sessões do Senado e da Câmara. A política era, portanto, um assunto que conhecia bem. 

Uma das grandes novidades das Badaladas, segundo a organizadora do volume, consiste na perspectiva satírica que Machado imprime ao tema, em afinidade com o perfil mais livre e humorístico da publicação. “A partir das ‘Badaladas’, Machado vai aprender a fazer uso da ironia, da qual se tornaria mestre, arma poderosa para que o cronista comentasse os fatos mais polêmicos relativos à política e à religião com a devida cautela”, destaca.

E Machado não tratou apenas de política durante os sete anos em que teria permanecido como colunista. Ele falou também das polêmicas em torno da maçonaria com a Igreja católica, de espiritismo, da “epidemia de poetas que assola o Brasil” e do preço do caixão para defuntos, fez charadas diversas, criticou os curandeiros, tratou dos loucos da cidade, ironizou anúncios publicitários absurdos e chegou até mesmo a escrever um poema sem nenhum sentido sobre uma “mulher tricéfala” vista na rua do Ouvidor. 

Para complicar um pouco mais a história, o próprio Machado chegou a ser ironizado pelo Dr. Semana, quando se dedicava a tecer intermináveis elogios a textos literários de péssima qualidade. Na coluna de 29 de setembro de 1872, ele lembrou o tempo em que o “amigo” — como chama Machado — cometia também uma “poesia nebulosa e retumbante”. Nebulosa e retumbante… eis aí uma definição resumida dessa nova edição de Machado de Assis.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).