Literatura,

O regresso como horizonte impossível

Romance de Djaimilia Pereira de Almeida narra história de imigração a partir dos elos coloniais entre Angola e Portugal

01nov2019

“Comovente” poderia ser uma dessas palavras de impacto que se costuma destacar na quarta capa de um livro para descrever Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida. Esse “comovente”, entretanto, precisa ser apreendido em mais de um significado para fazer jus aos percalços vivenciados nos lugares que compõem seu título, a anunciar uma história da diáspora e da imigração a partir dos elos coloniais entre Angola e Portugal. Espaços entrelaçados por uma temporalidade traumática que ecoa ainda hoje, embora localizada no livro num intervalo de mais de duas décadas na vida dos Cartola de Sousa. 

A sina que se segue tem como marco o nascimento de Aquiles, nome escolhido pelo pai, Cartola, por causa de uma má-formação do calcanhar do filho. O parto complicado, que se dá em Luanda, no início de 1970, “enquanto na rua se alinhavam tropas”, deixa Glória, a mãe, acamada desde então. Ela fica sob os cuidados do marido até que se cumpre o prazo para o possível conserto do corpo falhado do menino. Aquiles deveria ser operado até os quinze anos. Chegada a hora, pai e filho partem para Lisboa em busca do tratamento médico.

Transcorrido o grande voo do romance, Cartola e Aquiles chegam a seu destino. “Ninguém os esperava no aeroporto, mas era Portugal.” Conjunção adversativa que marca o desencontro entre o desejo de serem reconhecidos como cidadãos e a dura realidade vivida em uma pátria que os renega. Por um tempo, marcado por sucessivas cirurgias, eles vivem em pensão próxima do hospital ortopédico. Não tarda serem empurrados para o lugar que lhes é reservado pela exclusão, à margem, na Quinta do Paraíso, lugar fictício e talvez, por isso mesmo, transmutável em qualquer subúrbio. E o que se viverá ali é da ordem do afeto mais caro em meio à miséria, da solidariedade mais terna frente a fatalidades.

Djaimilia deve ter estado ciente do risco de entregar às mãos do leitor uma história que é comovente no sentido de provocar nó na garganta, tamanha soma de tragédias. Consciência que se revela na maestria com que dribla qualquer pieguice e nos co-move, isto é, impele a nos mover-com, acompanhar cada passo, incluídas as rasteiras, por meio de um léxico que toca coxo o chão, não como mero recurso descritivo. Consciência que está no ângulo narrativo, pois nos coloca muito próximos dos personagens. Inevitável não sentir que certos caminhos poderiam soar inverossímeis, até melodramáticos, mas só para quem não os palmilhou, se não por si, literalmente, junto com, literariamente.

Esses pés, esse cabelo

Para o leitor de Esse cabelo (2015), primeiro livro de Djaimilia, é inevitável estabelecer algumas mediações autobiográficas ao percorrer o novo romance. Neste último, a autora não comparece como personagem de si. Desta vez, quem narra revela dos personagens o que eles próprios talvez fossem incapazes de confessar como quem diz eu. Coisas que nenhum eu pode dizer em nome do outro. Nesse sentido, pode-se destacar a maneira como as relações entre doentes-cuidadores e cuidadores-doentes são ambivalentes. Cartola deseja a morte da mulher acamada com a mesma intensidade com que deseja suas melhoras. 

A presença feminina parece sempre criar contrastes ao adentrar ambientes de homens

A escritora parece dar um passo que se anunciara na estreia, na qual escreve sobre o eu: “Um ditongo aprendido numa cartilha, o que nunca deixamos de ser, mesmo que nos tornemos especialistas em falar em nome próprio”. De qualquer forma, entre um livro e outro, reconhecemos os paralelos ancestrais: a avó angolana que ficou ainda jovem imobilizada por conta de uma trombose e “de quem se poderia contar uma história negativa a partir dos sítios aonde nunca foi, da Lisboa que nunca viria a conhecer”; o bisavô albino com trança cor de milho; a potência poética do pentear dos cabelos; o avô que saía às cinco da manhã e regressava às oito da noite; o sonho de se tornar um legítimo português.

“De Portugal, a cidadania dos mortos foi seu único visto de residência”, lê-se a certa altura de Luanda, Lisboa, Paraíso. O contexto histórico-social é evidente, mais sutil talvez seja a morte como toada desde o nascimento de alguém batizado Aquiles. Se o nome logo remete a um ponto fraco no corpo em detrimento de um heroísmo sobre-humano desse mesmo corpo, como se lê na Ilíada, vale lembrar sua constituição enquanto palavra achos = luto; laos = povo, tribo, nação e que, na Odisseia, Aquiles habita o reino dos mortos. Não à toa, quando Cartola sobe ao Cemitério dos Prazeres, pela primeira vez se depara com iguais. Se regressar a Luanda seria como morrer de livre vontade, estaria mesmo vivo na cidade das sete colinas?

De homens

Apesar da presença imperiosa de Glória na trama, sua figura tem algo de espectral nas aparições em cartas e telefonemas. Só ganha carne na lembrança das mãos de Cartola a trançá-la ou deitada a observar tudo de dentro dos olhos de Aquiles, isto é, no que é próprio da corporeidade deles. Já Justina, a filha que ficou em Angola cuidando da mãe, quando passa um tempo com o pai e o irmão em Portugal, deixa tudo um brinco, até que parte e com ela vão também embora o asseio e a organização do lar. A presença feminina parece sempre criar contrastes ao adentrar ambientes de homens (casa, taberna, canteiro de obra).

Jorra daí um aspecto solar no interior de um romance por vezes sombrio: uma potente fraternidade masculina; uma sugestão homoerótica. Cartola e o galego Pepe inventam uma tardia amizade de infância. O menino Iuri evoca tudo aquilo que os adultos poderiam ter sido, cavando em terra batida uma esperança. O problema é que se trata de um campo minado, como é todo território onde se escondem lembranças de guerra.

Luanda, Lisboa, Paraíso é também sobre o regresso como um horizonte impossível, a não ser aquele que se dá depois da labuta. Não estranhe, por isso, se um outro Cartola tocar ao pé do ouvido durante a leitura do livro, com seus infinitivos carregados de futuro errante: “Se alguém por mim perguntar/ Diga que eu só vou voltar/ Quando eu me encontrar”.

Quem escreveu esse texto

Luciana Araujo Marques

É doutoranda em teoria e história literária na Unicamp.