Literatura,

O maior espetáculo da Terra

Em romance que relê em chave beat a Odisseia de Homero, Reinaldo Moraes nos arremessa numa constelação sem sujeito nem centro

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Reinaldo Moraes estreou nos anos 1980 com dois livros importantes, Tanto faz (1981, Brasiliense) e Abacaxi (1985, L&PM). Escreveu para o público infantil ao longo dos anos subsequentes até voltar ao romance, em 2009, com Pornopopéia (Objetiva), um tour de force impressionante, de uma beleza áspera irresistível. Imagino o peso que deve ter sido trabalhar em outro projeto, na sequência. As expectativas lá em cima. Mas Reinaldo conseguiu ultrapassar o sarrafo no salto criativo de tirar o fôlego que é Maior que o mundo, lançado pela editora Alfaguara em dezembro de 2018.

Quando escrevi sobre Pornopopéia, mencionei seu diálogo com a Odisseia, modelo grego para a arte e a filosofia no Ocidente: as peripécias do herói em seu périplo aventureiro, resistindo aos cantos de sereia e vencendo desafios, até o retorno à origem, restaurando a unidade que a experiência da multiplicidade fracionara. Moraes não se rende à integração apaziguadora com o feminino, a imagem da mulher que tece, paciente, aguardando a recuperação do equilíbrio perdido. A trajetória do protagonista transborda o desenho clássico, seja cancelando a recomposição da unidade pela justaposição das partes complementares, seja adiando (e, portanto, abolindo) a síntese da dialética romanesca. O protagonista dava voltas em torno de si mesmo e se remetia para longe, num contínuo movimento centrífugo, refugando ilusões de autocontrole e plenitude da autoconsciência.

Ele é o homem do pó, sempre ligado, embora desligado de si. Quase se afoga no regaço do mundo, esse marzão de deus e do diabo. A figura quase-materna o enleva. Mas as ondas não cessam, deformando marés previsíveis.

Desdobramento da narração

Em Maior que o mundo, Kabeto é o nome do protagonista-narrador. Nem sempre, entretanto, porque vez por outra a terceira pessoa intervém, espiando onisciente debaixo do edredom onde os amantes se esbaldam e guardando o sono do caminhante exaurido. Intervém com aviso prévio de uma quarta voz, interessantíssima, que se imiscui para cuidar da boa condução dos trabalhos. Impressionam a autoconsciência crítica do protagonista e a consciência do autor sobre o campo em que opera, a linguagem. Ao longo das 456 páginas tudo se complexifica, postergando a solução, provisoriamente — este é apenas o primeiro volume de uma trilogia —, nas aspas que fecham o romance, ecoando as que abrem a narrativa e passam despercebidas, ininteligíveis até que a descoberta do caderno-graal com a primeira frase brilhante desata o nó que bloqueava o escritor e, em parte, também o leitor que o acompanha.  

A comparação com ‘On the Road’, de Kerouac, impõe-se, ainda que essas remissões corram o risco de neutralizar a selvagem originalidade da obra

Impossível não sugerir que o romance, como o anterior, relê em chave beat a Odisseia clássica e sua versão moderna, em Ulisses, de Joyce, mas de um modo inteiramente original. O próprio autor/narrador reconhece o diálogo tácito com a estrutura das 24 horas joycianas (até mesmo o sim de Molly ressoa), assim como tremulam no mastro ébrio do marujo (sobrenome materno, ausente-presente) nossas mitologias, agitadas pela ânsia de glória e poder, e pelas massas na rua, sempre a uma distância do protagonista que o proteja da imersão direta na política, em sentido estrito.

O narrador, eu dizia, reconhece o diálogo, mas o faz na chave da ironia, da autoironia, esforçando-se para evitar qualquer laivo de pretensão — aliás, a vaidade e a soberba são exorcizadas com crueza, e cruelmente (lamento, entretanto, informar ao autor e à distinta plateia que o livro está destinado a converter-se em um clássico, aquele tipo de obra que resiste ao tempo e tende a se mostrar o testemunho mais grave, malgrado o humor onipresente, de nosso tempo).

Impõe-se a comparação com On the Road, de Kerouac (a literatura beatnik é sabidamente uma referência para Moraes), ainda que essas sucessivas remissões corram o risco de neutralizar a selvagem originalidade da obra. Não fosse por isso, eu incluiria na lista de comparações a série autobiográfica de Karl Ove Knausgard, embora Maior que o mundo não seja biográfico e os estilos, vá lá, sejam tão próximos quanto Brasil e Noruega. Comum entre ambos é inundar as cenas de observações agudas sobre mínimos detalhes, até saciar a voracidade dos sentidos que inspecionam o real, lhes oferecendo, na fração de um instante, o insight fortuito da peleja interminável entre o prosaico de nossas fomes e o espírito da época, que nos fornece o cardápio.

A destreza do autor com os recursos linguísticos e narrativos é inteiramente fora da curva, se é que há alguma forma geométrica regular que sirva de parâmetro para uma construção holográfica virtuosa. Nunca fui tantas vezes ao dicionário desde que li as descrições de Cormac McCarthy sobre a flora ressecada da fronteira onde o grande bufão do Norte hoje bate o pé para construir um muro de 8 bilhões de dólares. O foco não é botânico. Moraes investiga a fauna urbana e seus mais sórdidos ecossistemas, de onde, contudo, por vezes extrai o encantamento, fazendo emanar a sacralidade transgressora, quando não torpe, do erotismo — tentei, mas não consegui, impedir que minha compulsão comparativa citasse, neste ponto, Georges Bataille, Apollinaire e Sade.

O palhaço performer tagarela desperta só, quase cego, emborcado no sofá (so good), em pleno inverno paulista, depois que sua virilidade foi abatida pelo real, que despreza as veleidades do imaginário e terceiriza o simbólico para o computador do artista bloqueado. O declínio do macho e de sua cabeça irremediavelmente medieval vai conduzi-lo a uma viagem no tempo, revisitando antigas amantes, o velho amigo médico que o trai e a mãe, que é puro fel, mas lhe proporcionará a reconexão com a máquina de escrever do avô e do pai, de que resultará um mergulho infernal porém regenerador no fundo da noite até o caderno que o salvará, abrindo-lhe as portas para o encontro revivificador com o anão e a muié do mágico.

Ruína do protagonista

Em Maior que o mundo, o mar em que naufraga o protagonista é o álcool, e o universo é francamente visceral, untado de excremento e sangue, envolto em odores vaporosos e tóxicos, exatamente como isso que chamamos vida real. A ruína do corpo, seus dejetos e as emanações comunicam-se sem barreiras com o prazer exaltado, nunca amor romântico, jamais hedonismo. Afeto, sacrifício, culpa e as tábuas do cristianismo não têm espaço — ou ele gostaria que não tivessem — na quitinete de Kabeto, embora haja aspectos de uma via-crúcis em sua busca exasperante pelo Farta-brutus, o templo-bar das perdidas ilusões, em cujo altar será celebrada a cerimônia pansexual de gozo e expiação, liberando o protagonista de seu fardo priápico. Na volta para casa, a iluminação. Cidade ao fundo e à frente, palmilhada sem trégua, em queda, a queda adiada do anjo torto, cambaleante, que por fim se debruça para regurgitar a noite, todas elas, na caçamba com restos de obra — não por acaso.

Seguimos o mergulho de Kabeto na narrativa selvagem que descobriu no lixo. Ocorre que reescrever o caderno-do-lixo inverte toda a nossa compreensão 

Reenergizados, seguimos o mergulho de Kabeto na narrativa selvagem e fulgurante que descobriu no lixo, de onde extrai a joia a polir. O ourives-protagonista reescreve a história que encontra entre os restos podres da cidade. Lembremo-nos de que ele é o personagem apresentado pela terceira pessoa, autorizada pela quarta.

Ocorre que reescrever o caderno-do-lixo subitamente inverte toda a nossa compreensão, na medida em que Kabeto se revela habitante do cosmos aspeado, criado por um quinto narrador silente e ausente, espécie de deus ex machina que condena Kabeto ao interior de uma ficção, na qual reescreve a ficção que o constrói como sujeito da descoberta salvadora. Nada nos garante que Kabeto não esteja no caderno e que a descoberta do caderno não seja invenção da narrativa do próprio caderno. O trança-pé trai nossa cumplicidade — curioso registrar que a expressão francesa para perspectiva é trompe-l’oeil, esse engana-olho, trança-vista, que gera a ilusão da tridimensionalidade nas pinturas. Pois cá estamos, os leitores, em queda livre, nessa constelação sem sujeito ou centro, percebendo que vertigem e vísceras são o que nos resta de mais sublime. Acho que a literatura é a mulher do mágico.

Quem escreveu esse texto

Luiz Eduardo Soares

Antropólogo, é autor de Rio de Janeiro: histórias de vida e morte (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.