Literatura,

O livro da vida

Romance explora a possibilidade de conhecer o próprio futuro pelas páginas de um volume escrito

01jul2020

A vida você é quem faz. Ou não? Líbero Perim, garoto na mínima cidade de Pausado, vivia entre livros, os cuidados da mãe religiosa, a ajuda ao pai jornalista, os jogos com os amigos, as mangas suculentas da praça central, a tímida paixão pela ruiva Nanza. Acreditava que sua vida seguiria o trilho que desejasse e que o futuro seria uma página a ser escrita, distinta ou semelhante às tantas que lia.

Um dia, o circo. A cidade parou extática para ver o espetáculo, e Líbero, mais que os outros, conheceu a magia ao redor do picadeiro: um personagem exótico, vindo sabe-se lá de que mundo, ofereceu-lhe um livro. Não um volume a mais, igual ou diferente dos tantos que o menino lia. O livro. Nas suas páginas estava a vida de Líbero inteira, desde a pouca parte já vivida até a longa que ainda viria. O garoto de Pausado recebia um privilégio que é o sonho de muitos: poderia possuir o livro e nele conhecer a face do próprio futuro.

Privilégio incomum, da linhagem de milagre — e Líbero o rejeitou. Ao dar as costas a essa chance, recusou o que talvez seja o sonho de todos nós. Foi Octavio Paz, em um de seus mais incríveis ensaios (“A tradição da ruptura”, que abre Os filhos do barro), que alertou para a ambiguidade da experiência moderna: vemos o futuro como ideal e relativo; apostamos todas as fichas no tempo que virá, acreditamos na sua perfeição, mas alteramos ininterruptamente nossas expectativas e reinventamos o futuro desejado. Até porque, ao contrário de Líbero, sonhamos ver com antecedência a face do futuro, mas nem sequer a vislumbramos.

O tempo

O romance de estreia de Alfredo Nugent Setubal conta a história dessa recusa. Dividida em duas partes, a trama traz dois narradores. Na primeira, ouvimos a voz de Baltazar, estranha figura que havia oferecido o livro e, mais de duas décadas depois, ainda inconformado com a rejeição do menino, mantém o volume empoeirado na tenda do circo decadente. Sabe que em poucas horas Líbero retornará e, em ritmo aflito e entrecortado pelo sono, repassa as páginas que contam a infância do garoto até a noite do encontro no circo.

A segunda parte do romance dá mais espessura e densidade à história. Passaram-se os mesmos vinte e poucos anos, quem narra é Rúbio e Pausado parou no tempo. A cidade formada por círculos concêntricos de ruas cortadas por raios, “como um relógio gigante”, foi abandonada e ele, o único que ficou. Antigo ajudante do pai de Líbero no minúsculo jornal local e dono de história pessoal singular, Rúbio agora se empenha em frear os efeitos do tempo no vilarejo. Por ele, conhecemos o vendaval que varreu a tranquilidade da família Perim após a noite do circo.

O tempo, disse Borges, é a substância formadora dos homens. Para Baltazar, o tempo está contido num livro e, embora móvel, é infalível e sua narração é marcada pelos ponteiros do relógio. Para Rúbio, o tempo é inerte e sua passagem, inócua. Mas, para Líbero — o leitor intui a partir das falas dos narradores —, o tempo é angústia ante tudo que poderia ter sido e não foi.

O romance de Setubal explora essas fissuras e tensões na experimentação do tempo e metaforiza, na noite mágica e terrível do circo — com a decorrente oferta do livro da vida —, o momento em que passamos da infância à vida adulta, em que nos formamos e deformamos as expectativas nossas e alheias acerca do que virá: o futuro belo, terrível ou apenas amorfo que nos aguarda e como agimos para confirmá-lo ou transformá-lo.

Na quarta capa de O livro de Líbero, grandes letras perguntam ao leitor: “O que você faria se lhe fosse oferecido o livro da sua vida?”. A questão pode atrair tanto o leitor adolescente quanto o adulto, mas esconde o principal dilema que Líbero enfrenta no interior do volume: como alcançar a liberdade de escolher o próprio futuro? Como não se sentir condicionado pelas páginas que inclusive revelam o desfecho da sua história? Mais importante ainda para o menino que, antes da fatídica noite do circo, vivia imerso nas leituras: como aceitar que um livro aprisione nossa vida?

A saída é reconhecer que no princípio era o Verbo, o mundo foi feito para acabar em livro e a aliteração é explícita: livro, livre, Líbero. Ou lembrar que todo livro — até o livro da nossa vida — é obra aberta e inacabada, que toda leitura é criativa e que as leituras somadas contribuem muito para que sejamos nós a compor música, letra e dança da nossa vida.

Quem escreveu esse texto

Julio Pimentel Pinto

Professor de história da USP, é autor de A pista & a razão: uma história fragmentária da narrativa policial (Peixe-elétrico Ensaios).