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O Burundi é ali

Ambientado na guerra civil do país africano, romance mostra como a literatura pode ser um meio de lidar com a violência

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

Muitos escritores ao longo do tempo declaram uma ligação direta entre estilo e geografia, nação e literatura. No caso de países de pequenas proporções, a resistência do idioma por vezes se reflete na história de resistência das fronteiras e das identidades. Isso certamente se aplica ao caso de Ismail Kadaré e a Albânia, Dubravka Ugresic e a Croácia, Imre Kertész e a Hungria, e Orlanda Amarílis e Cabo Verde, para mencionar alguns exemplos. 

Esse campo é reforçado com o surgimento de Gaël Faye e seu romance Meu pequeno país, publicado originalmente em 2016 e agora lançado no Brasil. Faye mora na França e escreve em francês — é filho de pai francês e mãe ruandesa —, mas seu romance é sobre o Burundi, o pequeno país da África em que nasceu e teve de abandonar em 1995 após a deflagração de uma guerra civil. Nesse aspecto, o livro de Faye recorda aquele de Ishmael Beah, Muito longe de casa: memórias de um menino soldado, outro registro contundente dos traumas gerados por tais conflitos. Ou ainda o Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, sobre sua infância antes, durante e depois da independência de Moçambique. São títulos que compõem um amplo painel de renovação da literatura contemporânea que tem a África como tema e questão. 

O diferencial de Meu pequeno país está no modo como mostra o ponto de ruptura, a passagem de uma infância corriqueira e normal para uma que se dá sob o signo da intolerância, do ódio e da morte. Gabriel, o protagonista do romance, tem dez anos, mora com os pais e a irmã, vai à escola e aproveita o tempo livre com seus amigos — roubando mangas dos vizinhos, tomando banho no rio e correndo pelo mato. A situação política do país, contudo, logo se complica, reiniciando antigas rixas étnicas e os subsequentes massacres. Essa passagem de um estado a outro não é apresentada de forma abrupta, como uma surpresa que pretende pegar o leitor desprevenido. Pelo contrário, ela é anunciada desde o começo e vai pouco a pouco se construindo, com sensibilidade e habilidade narrativa. 

A questão colocada no início do romance é prosaica e rotineira: “Nunca vou saber as verdadeiras razões da separação de meus pais”. O narrador revisita a infância em busca do momento em que as coisas se transformaram para pior na dinâmica familiar. No processo, encontra também um conflito étnico de proporções monstruosas, um trauma histórico que ainda hoje reverbera: “Todos os dias, a lista de mortos crescia. Ruanda se tornara uma imensa reserva de caça, onde os tútsis eram as presas. Seres humanos culpados de terem nascido, culpados de existirem”. O amadurecimento da criança se dá de forma amarga, pois toda a carga positiva do futuro (a percepção esperançosa daquilo que ainda poderia ser feito) é substituída pelo medo. 

Descoberta da literatura

Quem pode sequer imaginar o que causa a uma criança a visão de um corpo morto — dezenas, centenas deles — na beira de uma estrada? Meu pequeno país começa como uma espécie de Os meninos da rua Paulo — o clássico de Ferenc Molnár sobre infância e amizade publicado em 1906 — ambientado na África, mas rompe esse registro e, dessa forma, muda também a postura do leitor e sua expectativa com relação à literatura e seus gêneros. “O mundo e sua violência se aproximavam cada dia um pouco mais”, escreve o narrador, “nosso beco não era mais o refúgio de paz que eu esperava, desde que meus colegas haviam decidido que não se podia permanecer neutro.” 

É a condição do exílio que marca a possibilidade de contar a história; a viagem material só é possível depois da viagem da memória

Em paralelo à derrocada da família e do país, no entanto, Gabriel se torna amigo de uma vizinha idosa que lhe apresenta a literatura. Tudo começa com um livro colhido ao acaso na estante da biblioteca da sra. Economopoulos, um título na lombada que chama a atenção do menino: “Naquela noite, antes de ir para a cama, apanhei uma lanterna dentro de uma das gavetas da escrivaninha de Papai. Debaixo dos lençóis, comecei a ler o romance, a história de um velho pescador”. A descoberta da literatura, que tornará possível no futuro o próprio romance que lemos, é tanto uma fuga da violência quanto um instrumento para lidar com ela. Os livros emprestados pela vizinha surgem como uma espécie de efeito terapêutico que permite a Gabriel se recolher em si, em sua subjetividade, fortalecendo-o para os momentos difíceis e o derradeiro exílio, que o levará à França.

É esse exílio que marca o contexto de produção do romance. Ainda que Gabriel evoque sua infância e a derrocada do país natal, é a condição do estrangeiro — e, portanto, do distanciamento — que marca a possibilidade de contar sua história. O livro começa com a evocação de um aniversário distante, no mesmo dia em que o narrador comemora seus 33 anos, sozinho em um bar de Paris, assistindo a uma reportagem sobre a crise dos refugiados na televisão. Vendo os exilados do presente, Gabriel resgata o próprio passado e seus traumas, tomando a decisão de fazer o caminho inverso e retornar à cidade da infância — um movimento anunciado nas primeiras páginas e concretizado apenas no final. Essa separação entre desejo e ato é necessária porque é preciso primeiro mergulhar imaginativamente no passado para, só depois, reivindicar quaisquer traços que dele tenham sido deixados para trás. A viagem material só é possível depois da viagem da memória. 

Além disso, o andamento do romance mostra um intrincado cruzamento entre a televisão do presente — as embarcações improvisadas dos refugiados — e as transmissões de rádio do passado. Essas ondas de informação, brotando não se sabe de onde, são determinantes para a visão de mundo que o narrador vai construindo, para si e para os outros. “Algumas feridas nunca fecham”, encerra o romance, quando consegue unir a viagem da memória à viagem do corpo. “Não sei como essa história acabará”, redige em seguida, indicando que a literatura pode não resolver, mas certamente ajuda a elaborar traumas e feridas, tanto nos pequenos como nos grandes países.  

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.