Literatura,

Nada além da literatura

História dos esforços de um homem para criar sua primeira obra literária compõe novo romance de Enrique Vila-Matas

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Entre os principais escritores contemporâneos, talvez J. M. Coetzee e Enrique Vila-Matas sejam os mais preocupados com a constituição de uma obra. Cada um de seus livros funciona de forma independente, mas também se encaixa em uma sequência coerente, lógica e fascinante. É como se uma trama maior estivesse sendo tecida a cada lançamento. Eles também podem ser lidos em subconjuntos, como a série autobiográfica de Coetzee ou as recentes incursões de Vila-Matas pela arte contemporânea. Todos os volumes têm a mesma qualidade. 

A constância com que os autores publicam se alia à técnica sempre convincente e bem realizada. O cuidado estilístico é parte central do projeto de ambos. O modelo, quase não é preciso dizer, é James Joyce. Coetzee é mais discreto. Vila-Matas, por sua vez, não esconde nenhuma de suas filiações e chegou a conceber um delicioso romance chamado Dublinesca — em que Joyce aparece como uma espécie de farol —, como sempre, levemente irônico e muito mordaz. Para quem ainda não conhece a obra do catalão, essa pode ser uma bela porta de entrada, talvez junto com Ar de Dylan. Eu seguiria então com Suicídios exemplares e A viagem vertical.  

Uma característica decisiva do composto romanesco de Vila-Matas é a maleabilidade: seus livros não se prendem a nenhuma especificidade 

No segundo semestre de 2018, saiu no Brasil Mac e seu contratempo. Antes, o último título de Vila-Matas lançado entre nós havia sido Não há lugar para a lógica em Kassel. Não faz muito sentido estimar qual seria o melhor livro dele, já que, insisto, seu trabalho autoral é um composto romanesco. Para mim, no entanto, Não há lugar para a lógica é uma espécie de amálgama de toda a sua obra: estão ali a irreverência contida, as associações inusitadas, o narrador advertindo o tempo inteiro que ocupa um lugar problemático e pouco confiável, o nome que assina o livro intervindo na própria obra, a discussão contínua do aspecto de criação artificial da literatura. Convidado por curadores misteriosos, o escritor Vila-Matas, dentro da história, recebe na tradicional Documenta de Kassel um espaço análogo ao de uma obra em exposição. Ele deveria se sentar a uma mesa por alguns dias e conversar com possíveis leitores. Por trás de tudo está o estatuto da arte contemporânea, aliás muito habilmente defendido por Vila-Matas. Depois de Mac e seu contratempo, o escritor publicou outro volume inusitado — ainda inédito no Brasil —, o romance Marienbad Electrico, em que ela volta a ser discutida em registro diferente. 

Em breve resumo, Mac e seu contratempo é a tentativa que um homem em crise profissional e pessoal empreende para criar sua primeira obra literária. Para isso ele escreve um diário, no qual começa por registrar sua ideia: reescrever os contos que um vizinho publicara havia alguns anos e que acabaram esquecidos. Daí em diante o narrador descreve e comenta cada uma das histórias, oferece opções e aos poucos vai entrando no próprio livro, até não conseguir mais separar com exatidão o que é ideia do que seria realidade. A vida vira um caleidoscópio de neuroses, que vão da própria habilidade com a escrita até, naturalmente, a desconfiança de que a mulher está tendo um caso extraconjugal com o autor do livro obscuro que deverá ser reescrito. Permeando tudo, comentários mordazes sobre literatura contemporânea (como a observação de que é preciso ser muito despreparado para comparar Karl Ove Knausgård a Marcel Proust), a situação política da Espanha e o embaraço que o mundo está se tornando.

Uma característica decisiva do composto romanesco que Vila-Matas está criando é a maleabilidade: seus livros não se prendem a nenhuma especificidade. Eles se deixam escorrer, buscando sempre um espaço que a literatura não costuma ocupar. Daí seu interesse pelas artes plásticas: com a amplidão de conceitos que os movimentos contemporâneos permitem, nosso autor se sente à vontade para aqui e ali fugir do que já se convencionou chamar de literatura.

No caso de Mac e seu contratempo, o diário foi o gênero escolhido justamente por permitir que as identidades entre narrador e autor perdessem qualquer diferença. Como a elasticidade de Vila-Matas sempre lhe proporciona ir mais além, aqui não é só esse duplo que perde o sentido. 

Outro, mais sutil, também acaba intervindo e determinando novas dissoluções — o autor do diário e o autor do romance acabam se desdobrando, o que resulta em observações sempre jocosas: “O escritor como assassino profissional. Isso poderia explicar por que outro dia, ao ver o falso sobrinho — tão investido de seu papel de talento ainda por descobrir, de ‘melhor do mundo’, embora secreto —, eu tenha proposto que ele virasse um assalariado do crime”. A desestruturação final mostra que o meio profissional da literatura não parece mais saudável que nenhum outro. 

Uma coisa é a outra

Mac e seu contratempo se soma a outros dois romances sob a forma de diário lançados neste ano. Janelas irreais, do carioca Felipe Charbel (Relicário Edições), faz das memórias de leituras do narrador uma espécie de anteparo para todas as crises que o mundo extraliterário não para de criar. O romance luminoso, do uruguaio Mario Levrero (Companhia das Letras), acaba percorrendo o caminho simetricamente oposto: é a literatura que determina todo tipo de desarranjo no mundo do narrador. Sem a obrigação de que ela surja, as coisas estariam de fato bem melhores. 

O livro de Vila-Matas fica a meio caminho desses dois. O autor e seu livro não pretendem que a literatura seja algum tipo de anteparo, como no caso de Charbel, tampouco agem como Levrero, que gostaria de tudo, menos da ficção. No nosso caso, uma coisa é rigorosamente a outra por um motivo complicado de explicar, mas bastante simples de apresentar: não existe mais nada.

Quem escreveu esse texto

Ricardo Lísias

Escreveu Diário da cadeia (Record) sob o pseudônimo de Eduardo Cunha.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.