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Na colônia penal do czar

Tchékhov, que além de escritor era médico, relatou abusos em ilha de prisioneiros na Rússia do século 19

01nov2018 | Edição #18 nov.2018

Sempre achei que existiam semelhanças entre Tchékhov e eu: a medicina, o nome de Antonio (que ninguém usa), o casamento com uma atriz de teatro, o fascínio por prisões e, talvez, eu goste tanto de escrever quanto ele gostava. Nesse quesito, no entanto, um abismo nos separa.

Tchékhov foi um dos maiores talentos da literatura russa, num século em que estiveram em atividade Tolstói, Púchkin, Dostoiévski, Turguêniev, Gógol e vários outros.

Neto de um servo e filho de um pequeno comerciante que, para não ser preso por dívidas na cidade natal, precisou fugir com a família para se abrigar num porão em Moscou, coube a Tchékhov sustentar os pais e os irmãos com os contos que escrevia em jornais e revistas.

Tese rejeitada

Aos trinta anos de idade, resolveu fazer um trabalho médico em Sacalina, ilha do Pacífico ao norte do Japão, a mais de 9 mil quilômetros de Moscou. Com extensão de quase duas vezes o estado do Rio de Janeiro, a ilha foi transformada pelo regime czarista em colônia agrícola e penal para criminosos e presos políticos.

Ao chegar, o condenado cumpria um período de trabalhos forçados, progredia para a condição de colono — recebia uma parcela de terra a ser cultivada —, para mais tarde adquirir o estatuto de camponês, que lhe dava direito de trabalhar numa cidade da Sibéria. A deportação era irrevogável.

A viagem a Sacalina exigiu determinação: três meses em trens, navios, balsas e cerca de 2 mil quilômetros percorridos em coches e a pé. Com um salvo-conduto para visitar a ilha inteira e conversar com os habitantes e as autoridades locais, Tchékhov pôde iniciar o projeto em julho de 1889. Foram três meses de pesquisas que culminaram em uma tese apresentada à Universidade de Moscou. O trabalho foi rejeitado pela direção por considerar que o assunto não tinha relevância científica. Seis anos mais tarde, o livro seria publicado.

A narrativa começa no povoado de Nikoláievsk, local do primeiro contato com a realidade. Metade das casas estava abandonada: “quase em ruínas e as janelas escuras e sem esquadrias olham para nós como órbitas vazias de uma caveira”. O estado dos habitantes não lhe pareceu mais digno: “levam uma vida sonolenta e embriagada e, no geral, passam fome, comendo o que Deus der a eles”. Grandes escritores impõem seu estilo já nos primeiros parágrafos.

Sem encontrar abrigo ao anoitecer, o autor se indaga: “O que vim fazer aqui? Minha viagem me pareceu uma grande insensatez”. Dias depois, ouviria do general Kononóvitch, comandante-geral da ilha: “Todos querem fugir daqui. Os forçados, os colonos, os funcionários”.

O livro ultrapassa as fronteiras do inquérito ao entremear dados com vozes dos circunstantes

O desânimo inicial deu lugar à dedicação ao trabalho que o levou àquelas paragens. Decidido a visitar todos os assentamentos e conhecer mais de perto quantos deportados pudesse, recorreu ao método que lhe pareceu mais viável: o recenseamento. De casa em casa, anotou o nome dos moradores, a condição (forçado, colono, camponês deportado ou livre), o estado civil, o nome do cônjuge e dos filhos, as idades, o tempo de residência na ilha e demais dados pessoais.

O levantamento foi conduzido com o rigor dos inquéritos epidemiológicos, acompanhado de sugestões para melhorar a insalubridade das moradias e os problemas de saúde da população e amenizar o sofrimento imposto aos prisioneiros acorrentados nas cadeias e fora delas.

No final da pesquisa, em carta a Suvórin, seu editor, ele dá ideia da abrangência da empreitada: “Percorri todos os povoados, entrei em todas as isbás e falei com todas as pessoas; para o recenseamento, utilizei um sistema de fichas e já registrei cerca de 10 mil forçados e colonos. Em Sacalina não há forçado ou colono que não tenha falado comigo”. 

As descrições mantêm o distanciamento do cientista que observa um experimento: a paisagem inóspita, a precariedade das habitações, a miséria dos moradores, os costumes, a fome e o frio onipresentes.

O mérito maior, entretanto, foi ultrapassar as fronteiras do inquérito e entremear os dados etnográficos com a voz dos circunstantes. O olhar do pesquisador se detém o tempo todo no aspecto físico, no olhar, nas vestes, nas histórias individuais e no modo de viver dos homens e das mulheres, fossem elas condenadas por crimes cometidos ou companheiras dos maridos deportados que se negaram a abandoná-los.

Veja a descrição do forçado de codinome Bonito, que o transportou num barco: “Já tem 71 anos. Corcunda, escápulas salientes, sem o polegar numa das mãos, traz no corpo inteiro as cicatrizes das chicotadas e vergastadas que levou no passado. Os olhos são azuis, claros, com uma expressão alegre e bondosa”. Em três linhas, o autor expõe as contradições e os dramas do remador de quem a brutalidade da repressão não roubou o gosto de viver, deixando para o leitor a tarefa de imaginar as vicissitudes pelas quais teria passado aquele homem.

No povoado de Aleksándrovsky visitou uma prisão com 2 mil encarcerados, na qual aqueles punidos por tentativas de fuga permaneciam acorrentados: “Esfarrapados, sujos, presos a correntes, de sapatos disformes e atados com trapos […]. Não há camas, dormem despidos diretamente nas tábuas. No canto está o penico; todos têm de fazer suas necessidades diante de vinte testemunhas”.

Na mesma prisão, conheceu Mãozinha de Ouro enjaulada numa solitária, mulher “pequena, bonita, já um pouco grisalha, rosto enrugado, envelhecido, tem correntes nas mãos. Caminhava o tempo todo de uma ponta à outra da cela, como um rato na ratoeira. Não dá para acreditar que, pouco tempo antes, era bonita a tal ponto que seduzia seus carcereiros” — um dos quais fugira com ela, ousadia punida com a solitária quando recapturada.

Almas do avesso

Numa região em que o inverno chega a durar dez meses, o trabalho era o tormento mais penoso. Depois de um dia de esforços exaustivos, fustigado pelo vento gelado, “o forçado retorna à prisão, para pernoitar em roupas ensopadas e sapatos enlameados; não tem como se secar […] as roupas de baixo ainda molhadas e há muito tempo sem lavar ficam misturadas com sacos velhos e andrajos apodrecidos”. Nesse ambiente, o odor repugnante “vira a alma do avesso”. O cheiro acre das celas superlotadas não poderia ser caracterizado por imagem mais contundente.

Tchékhov descreve com detalhes as instalações e as condições medievais das prisões da ilha, para concluir que “a vida nas celas comuns escraviza e degenera o preso”, uma observação de caráter universal.

Por medo de ver meu projeto reduzido à insignificância, não tive coragem de ler A ilha de Sacalina ou Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski, antes de escrever Estação Carandiru. Mais tarde, no livro de Dostoiévski, sentiria falta de conhecer melhor os prisioneiros. Quando ele menciona dois irmãos cossacos enviados para a Sibéria por roubar cavalos, eu gostaria de saber quem eram, de onde vinham, o que pensavam e como viviam os ladrões de cavalo na Rússia antiga. 

Em Tchékhov, ao contrário, a narrativa é centrada no homem. É o médico que faz a anamnese, ausculta, avalia, interage com o interlocutor e se surpreende com a capacidade de adaptação ao meio e a imprevisibilidade do comportamento humano.

Mesmo quando descreve cenários, o homem é o sujeito oculto: “Em Duê, o silêncio é constante. O ouvido logo se habitua ao tilintar ritmado das correntes, ao barulho da arrebentação do mar e ao zumbido dos fios telegráficos, e, por conta de tais ruídos, a impressão de um silêncio de morte se torna mais aguda”.

Apesar de o autor se declarar apolítico, o relato é um libelo contra uma sociedade injusta e cruel, quase um manifesto político em tom de aparente isenção

Uma ilha separada do continente por um mar cheio de perigos, montanhas, nevoeiros, vastas áreas desocupadas, os ursos, a fome, os mosquitos, as geadas no inverno e as nevascas — nada disso impedia as tentativas de ir em busca da liberdade, aspiração inerente ao homem preso e um de seus atributos mais nobres: “A menos que seja um filósofo para quem, em toda parte e em todas as circunstâncias, vive-se igualmente bem, o criminoso não pode deixar de fugir, e nem deve”.

A experiência mais traumática vivida pelos médicos nas cadeias é o contato íntimo com a violência. Somos formados para aliviar o sofrimento humano, a razão de existir da nossa profissão. Conviver com a barbárie nos atinge de maneira particular.

Na carta ao editor, Tchékhov lamenta: “Presenciei o castigo com o chicote e depois, por três ou quatro noites, sonhei com o carrasco e com o medonho banco onde prendem os castigados. Conversei com forçados acorrentados a um carrinho de mão […] meus nervos ficaram em pedaços e jurei a mim mesmo nunca mais ir a Sacalina”. 

Fiz juras semelhantes diante de corpos com mais de cinquenta facadas e estupradores empalados com cabo de vassoura, sem jamais cumpri-las. Tchékhov não retornou a Sacalina, de fato, mas a experiência com os prisioneiros siberianos influenciou sua produção literária subsequente. Em contos e peças teatrais, suicídios, assassinatos e duelos são narrados como episódios vulgares do cotidiano.

O inquérito de saúde pública realizado em Sacalina é um mergulho nas trevas da repressão e da desigualdade russa daquele século, realizado por um homem atento, de olhar terno e solidário, em busca da verdade interior, dos anseios e dos valores morais de cada personagem. Não por acaso, o livro chamou a atenção pública e justificou as medidas que levaram à desativação do presídio, em 1906.

Sem desperdício

Apesar de o autor se declarar apolítico, alheio à efervescência da época, o relato é um libelo contra uma sociedade injusta e cruel, quase um manifesto político em tom de aparente isenção. Durante a carreira toda envolvido com histórias dos dramas cotidianos de pessoas comuns, sem a pretensão de que seus livros subvertessem a estrutura social, Tchékhov já havia escrito aos 22 anos, numa reportagem sobre a perversidade da caça aos lobos nas imediações de Moscou: “Dizem que estamos no século 19. Não o creia, leitor”, frase que parece ecoar em cada página de A ilha de Sacalina.

Como em outras de suas obras, Tchékhov não faz circunvoluções literárias, não desperdiça sentenças, emprega adjetivos e advérbios com parcimônia, persegue a clareza como objetivo prioritário. O narrador está na primeira pessoa, não é isento, mas não impõe valores ou modos de pensar; em nenhum momento pretende ostentar sabedoria ou erudição. Não há julgamentos, o respeito pelo personagem está acima de tudo, é ele a razão de existir do relato. A simplicidade do texto é obtida graças a um processo trabalhoso de elaboração.

Em uma carta a Górki, Tchékhov critica trecho de um conto escrito pelo amigo e discípulo. Explica que o cérebro humano se perde no cipoal de palavras desnecessárias e aconselha a concisão: “A arte deve ser apreendida num relance”.

A essência de sua arte está na observação aguda dos detalhes, no cuidado em evitar frases, descrições e pensamentos que não agreguem significado ao enredo, à complexidade dos personagens ou à compreensão da alma humana.

A tradução de A ilha de Sacalina é primorosa. Em nenhum momento o texto segue caminhos tortuosos ou faz acrobacias para acomodar as construções gramaticais estrangeiras. Bem ao contrário, ele nos dá a impressão de que foi escrito originalmente em nossa língua, demonstração inequívoca da qualidade do trabalho. Rubens Figueiredo é considerado um dos tradutores mais talentosos do russo para o português, merecidamente.

Quem escreveu esse texto

Drauzio Varella

Médico, é autor de Prisioneiras (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.