Literatura,

Minas em desencanto

Luiz Ruffato traz visão melancólica da sua cidade natal em novo romance

01out2019 | Edição #27 out.2019

Oséias está triste. Ao longo de 230 páginas, está triste. Como não o conhecemos antes disso, não seria impróprio afirmar que Oséias não esteja triste: talvez seja triste. Ninguém o obriga a ir a Cataguases; a bem da verdade, não tem muito o que fazer em Cataguases. Mas ele vai, ou melhor, já foi: o romance começa com a chegada do ônibus à cidade de sua infância, feia como todas as cidades médias de Minas (por que será que o esplendor melancólico do Barroco mineiro deu lugar a uma proliferação de cidades feiíssimas?).

Logo nas primeiras páginas, a leitura de O verão tardio convoca uma tristeza semelhante à de Oséias, com uma diferença fundamental: o leitor desfruta o prazer da leitura; o personagem não. Os capítulos são os cinco dias da semana, entre uma terça e um sábado: desde que desembarca na rodoviária até o momento que conclui o propósito da viagem. Não há parágrafos nos capítulos; a narrativa se desenvolve em um fôlego só, pontuada pelo sono inquieto de cada noite, de 3 a 8 de março.

Somos levados a experimentar o desencanto do protagonista através da descrição minuciosa, a cada dia passado em Cataguases, de uma sequência de ações banais: acordar, ir ao banheiro, lavar o rosto, vestir cada peça da roupa que sai amassada da mochila, tomar café com pão sempre ruins na padaria, entrar no ônibus cheio, reconhecer num rosto envelhecido o antigo colega de escola, desembarcar num bairro feio onde encontra outras lembranças de infância. Várias vezes, ao longo do dia, tem de lavar o rosto suado e desembaçar os óculos nos banheiros apertados da pensão, dos bares.

Nenhum lugar poderia ser tão diferente das Gerais de Grande sertão: veredas quanto essas cidades interioranas que brotaram no século 20. Luiz Ruffato, que nasceu em Cataguases, carrega o cenário com as tintas do desencanto. O córrego onde Oséias pescava lambaris com os amigos de infância virou esgoto a céu aberto; a pequena mata onde inventavam aventuras virou estacionamento dum condomínio fechado.

Mas, até a última página, não sabemos o que foi fazer em Cataguases. Procura os irmãos, uma antiga namorada, o padre, a ex-mulher, o primo que enriqueceu. Todos parecem embotados, endurecidos pela mediocridade da vida. A irmã Rosana, casada com um homem que também enriqueceu, não consegue disfarçar o mal-estar de hospedar Oséias: “O que você quer, Oséias, além de causar tensão em minha casa?”. Oséias, então, é expulso e vai se abrigar numa pensão. Outra irmã, Isinha, tem uma vida difícil, faz costuras para fora; é a personagem mais espontânea, com quem o leitor simpatiza. Já o novo padre da igreja que Oséias frequentou, jovem, dinâmico, não tem tempo para ouvir a confissão do protagonista.

Sociabilidade banal

Marilda, a ex-mulher, engordou, virou alcoólatra — carente, recebe Peninha (apelido de infância de Oséias) com macarrão e vinho tinto. É dessas que insistem para que o hóspede coma mais. Marcim, amigo de adolescência, está na política: sua conversa é cínica, empapada de autossatisfação. O primo João Lúcio tornou-se caricatura do novo-rico vaidoso com o carrão e a casa de fazenda com piscina.

Nenhum lugar poderia ser tão diferente das Gerais de ‘Grande sertão: veredas’ como Cataguases

Entre os fardos que um melancólico carrega está o de não conseguir compartilhar o código da sociabilidade banal — pontuada de pequenas mentiras — que rege a relação entre conhecidos, entre parentes e amigos que perderam a intimidade. O melancólico perdeu a fantasia. Assim, Ruffato sugere uma afinidade entre Oséias e Lígia, a irmã que morreu cedo. A memória persistente de Lígia pontua a narrativa. Misturadas à memória do que foi a cidade, imagens da irmã caçula torturam Oséias.

Um vira-lata preto, faminto, segue Oséias durante alguns dias e se beneficia de restos de sanduíches e pastéis engordurados, mas Ruffato não concede ao leitor o consolo de uma amizade fiel entre homem e cão. Também não concede uma brisa, uma chuva de verão: nada ameniza o calor de Cataguases. Nada ameniza a melancolia da bela narrativa de Um verão tardio.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.