Literatura,

Leituras póstumas de Machado de Assis

Coletânea revela as mudanças nas avaliações dos escritores brasileiros sobre o Bruxo e os debates que sua obra provocou (e segue provocando)

01ago2020

Quem pensa em Machado de Assis de casaca sentado na sua cadeira cativa da Livraria Garnier cercado de escritores e bajuladores, ou em forma de busto de bronze na frente da Academia Brasileira de Letras observando a comédia humana passar, não imagina as muitas bordoadas que tomou da crítica e de outros escritores ao longo da vida e até mesmo — assunto desta resenha — depois da morte.

Se Machado teve tempo de desfrutar da glória literária que alcançou graças à sua raríssima capacidade intelectual e certa resiliência, também esteve longe de ser uma unanimidade, o que torna sua trajetória ainda mais interessante e cheia de conflitos e contradições. Os seus livros e a sua biografia seguiram despertando fascinação, rejeição e controvérsias memoráveis, algumas presentes até os nossos dias, a exemplo dos mal-entendidos em torno de sua negritude — bastaria lembrar o comercial da Caixa Econômica Federal exibido em 2011 no qual o ator que interpretava Machado era, na melhor das hipóteses, tão branco quanto José de Alencar.

Mas é claro que esse mal-entendido em particular não vem de hoje, conforme atesta a famosa carta que Joaquim Nabuco, o abolicionista, enviou ao crítico literário José Veríssimo dias após a morte de Machado, em 1908, na qual dizia que jamais teria se referido ao escritor como “mulato”, pois “nada lhe doeria mais”. E argumenta: “A palavra não é literária e é pejorativa, basta ver-lhe a etimologia. […] O Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tomava; quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego”. Na certidão de óbito de Machado, em um clássico da nossa história de racismo, constava que o escritor era branco.

O lançamento do segundo volume de Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares, que reúne desta vez textos de outros escritores sobre o Bruxo feitos entre 1939 e 2008, fechando a série com Milton Hatoum, nos permite rastrear novos motivos dessa fascinação, do espanto, das incompreensões e até de certa virulência contra Machado — ou dessa “unanimidade controversa”, como sugerem os organizadores da edição, Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn.

Conflitos intensos

Se no primeiro volume, um pouco mais magro, que cobria os anos de 1908 até 1939, acompanhamos a monumentalização da obra de Machado por meio de textos de seus confrades da Academia em depoimentos de caráter mais pessoal, assim como as primeiras disputas pelo seu legado e um revelador silêncio em torno de sua obra por parte da maioria dos modernistas de primeira hora, no segundo volume os conflitos são em grande parte renovados, e na maioria das vezes bem mais animados e intensos. 

Nasce um crítico aguçado das elites brasileiras, um escritor ‘mais perto de nós’, conforme Joel  Silveira

E, nessas novas leituras, a obra do próprio autor vai também se renovando, o que demonstra uma capacidade surpreendente dessa obra — ou de parte dela, pois a poesia de Machado vai aos poucos sendo deixada de lado, assim como seu teatro e seus primeiros romances — de dialogar com as novas gerações literárias, chegando ao século 21 como um contemporâneo nosso. Não por acaso, uma das grandes questões que aparecem em parte desses textos, a partir principalmente de 1950, diz respeito ao “novo Machado”, que na verdade são muitos. 

Por um lado, não se trata mais da imagem do escritor frio e cerebral, cuja obra seria alienada e indiferente aos problemas do país, e muito menos do monumento-Machado ligado às políticas literárias conservadoras que ele próprio — verdade seja dita — ajudou a construir, estereótipos que colaram por décadas na imagem do escritor; na contramão, vai nascendo um crítico aguçado das elites brasileiras, polêmico e temporal, ou seja, um escritor “mais perto de nós”, conforme escreveu Joel Silveira em 1955. 

A respeito do monumento-Machado, há uma crítica duríssima de Jorge Amado que merece menção, em curioso texto de 1977 no qual noticia que agora as mulheres poderão concorrer às vagas na Academia Brasileira de Letras, dando fim a uma tradição de oitenta anos. Sobra para Machado, seu primeiro presidente e fundador, que na visão de Jorge Amado foi manipulador e encontrou seu jeito de “impor o machismo”: “Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadêmicos foi uma das salafrarices [sic] cometidas por Machado de Assis quando fundou a chamada Ilustre Companhia, não foi a única, o sujeitinho mais salafrário nosso venerado mestre do romance”.

Avanços na teoria literária

A outra onda de renovação de Machado está ligada às interpretações inéditas dos seus livros, sobretudo dos romances ditos maduros, que vão se tornando mais complexas, acompanhando também certos avanços tanto da teoria literária quanto do debate político — nesse último caso, estou pensando em especial na influência dos movimentos feministas nas novas leituras de Dom Casmurro e dos movimentos negros em relação ao posicionamento crítico de Machado contra o regime escravocrata, dois capítulos importantes da recepção machadiana.

Em suma, nesse movimento no qual Machado é lido por outros escritores, ele também segue nos lendo, ou seja, iluminando nossos problemas, sugerindo outros, revelando as nossas misérias. 

Por exemplo, quando Peregrino Junior analisa os retratos de Machado de Assis em 1941 e propõe que as “feições finas e discretas” do escritor já maduro expressam “doçura e bondade” — quando Machado se pareceria a um “europeu, um civilizado” — em oposição à “feiura” e aos “cabelos crespos” do jovem Machadinho, delineia-se também um “retrato” do próprio autor do artigo, no sentido de que revela seus preconceitos e os padrões discursivos e de beleza de seu tempo; afinal, todo retrato que fazemos do outro é também um autorretrato.  

E os conflitos deste segundo volume envolvem outros pesos pesados da nossa tradição, como Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Graciliano Ramos — que, em texto bastante reticente, no ano do centenário de Machado, se põe desconfiado em relação à posição de “mito nacional” do autor, “símbolo com estátuas e placas na rua”. Registram-se ainda, lamentavelmente, as ausências de Guimarães Rosa — que em seu diário, jamais publicado, possui um depoimento mal-humorado contra as Memórias póstumas de Brás Cubas — e de Manuel Bandeira, autores que não constam da antologia por falta de autorização dos titulares de seus direitos autorais.

Razões da controvérsia

Acredito em três razões principais para explicar os motivos dessa “unanimidade controversa” em torno de Machado de Assis — ele que dizia sentir “tédio à controvérsia” — e por que o autor despertou e segue despertando tantas polêmicas, paixões, mal-estares e incompreensões de todo tipo.

A primeira razão é de caráter biográfico: Machado não foi apenas um escritor negro (e muito pobre durante parte da vida) em um país profundamente escravocrata e elitista; ele foi também o maior. Os efeitos desse embaraço aos olhos de certos críticos e escritores brancos da época e ao longo do século 20 são visíveis, complexos e variados, e sem dúvida acabaram afetando também a própria maneira como Machado escreveu sua obra e sobretudo a maneira como se portou socialmente. Contemporâneo do Bruxo, o crítico Silvio Romero chegou a afirmar — em outro clássico da nossa história de racismo — que Machado seria “um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada”.

Como notam Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, a vida de Machado passa a ser objeto de exames minuciosos e de adjetivos — alguns cruéis — que vão de cerebral a maníaco, passando por feio, frio, amargo, parado, indiferente, medíocre, arredio, gago, tímido, doentio, egoísta, mulato etc. Mede-se tal interesse na vida do escritor — que começou a ler e a escrever sem educação escolar, e consta que aprendeu francês com um casal de padeiros da cidade — pelo número de biografias que existem a seu respeito: são pelo menos quatro.

E se engana quem considera que os preconceitos contra a sua origem e cor foram arquivados junto com o seu atestado de óbito. Os motivos biográficos — em especial em torno de sua negritude, mas não apenas —  serão recorrentes em toda a recepção, a começar pelas aguerridas intervenções de Lima Barreto, um dos seus principais rivais, que afirmou em texto de 1919 que Machado escrevia indiferente ao seu meio, à sua raça e ao seu momento histórico. 

Esse senso comum perdurou e passou a ser repetido com outras palavras ao longo do século 20 por Aníbal Machado (“Machado foi o menos brasileiro dos nossos escritores”), Jorge de Lima (“Machado sempre evitou toda tentativa de devassa que os poucos amigos pudessem fazer à história de sua família”), José Lins do Rego (“em Machado de Assis o sangue negro é uma vergonha, que ele esconde, que procura corrigir por todos os meios”), Erico Verissimo (“Machado não mostrava nenhuma das características de sua raça”), Rachel de Queiroz (“houvesse naquela época esticador de cabelo, teria mandado alisar o seu”), Glauber Rocha (“nunca sujou as mãos nas senzalas”), entre tantos outros.

Tal senso comum só recentemente passou a ser revisado pela crítica, seja com um olhar mais atento aos detalhes dos romances e contos do Bruxo — a exemplo do livro Machado de Assis afrodescendente, no caso em particular da questão racial, organizado pelo pesquisador Eduardo de Assis Duarte e publicado pela Editora Malê —, seja com a publicação de um conjunto de crônicas que ficaram por muito tempo de lado, nas quais a postura crítica de Machado em relação às questões políticas de seu tempo é mais flagrante.

Aqui entramos na segunda razão para tanta controvérsia: a obra de Machado, sobretudo a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, é de manejo bastante complexo e de difícil interpretação. 

O longo debate sobre Capitu

Esta é uma questão que vai sendo compreendida muito lentamente: a obra de Machado exige uma visão crítica e uma capacidade de leitura também renovada. Em artigo de Ricardo Ramos (um dos filhos de Graciliano), de 1958, ele chega a afirmar que “certos escritores não são facilmente encontrados pela crítica”, e entre nós o melhor exemplo seria Machado, cuja obra “ainda motiva toda uma série de redondos equívocos”. Ricardo Ramos estava redondamente certo, e o principal desses equívocos — ou o mais célebre — ainda estava por ser revelado: diz respeito à longa controvérsia que toma conta das letras brasileiras a respeito da culpa ou da inocência de Capitu.

Especialistas preparam versões de obras de Machado de Assis para o inglês, o dinamarquês e o espanhol

Desde 1899, ano da publicação de Dom Casmurro, o romance foi interpretado como sendo sobre o adultério. E ponto. Na verdade, a questão do adultério de Capitu era tão naturalizada que nem chegou a ser digna de interpretação, como se percebe em inúmeros comentários. Nesse sentido, é muito interessante ler os textos desses escritores sobre Dom Casmurro pensando em 1) como e por que o discurso do adultério rapidamente se naturaliza na crítica machadiana; 2) de que maneira depois vai sendo aos poucos relativizado; e 3) como, finalmente, tal questionamento provoca uma abalada reação — e às vezes hilária —, a exemplo dos três artigos de alguns dos escritores mais machos da nossa tradição, publicados a partir dos anos 1990: Otto Lara Resende, Dalton Trevisan e Millôr Fernandes.

Se Machado tivesse falecido aos quarenta anos, teríamos um escritor mediano, e não o gênio que conhecemos. Poeta medíocre, um pouco melhor dramaturgo 

Indignado com uma questão do vestibular de 1992 que opta pela interpretação do ciúme, Otto protesta em sua coluna à época. Diz que negar o adultério de Capitu é “pura fantasia”, “bestialógico”, argumenta que “Bentinho era estéril”, que nem o próprio Machado negou o adultério de sua personagem, e ainda aponta o capítulo em que se dá o flagrante — capítulo 113, “Embargos de terceiro”. Trevisan vai na mesma direção — “uma barbaridade!” — e invoca sessenta anos de consenso entre a crítica machadiana, pois é. Lygia Fagundes Telles, embora mais polida, concorda com ambos, em texto recentíssimo, de 2008, quando chegou a reler o romance e conclui: “Agora tinha ficado mais claro, também a mim ela enganou, era amante de Escobar e o filho era dele”. 

Já Millôr vai mais longe: defende que Escobar não apenas “comeu Capitu” — os termos são dele — como também sugere que o marido e o suposto amante nutriam um “tipo de relação homo”. 

Como sabem os machadianos, o livro que a professora — e precursora dos movimentos feministas norte-americanos — Helen Caldwell escreveu sobre Dom Casmurro, publicado em 1960, tem importância fundamental para entender essa “absolvição” de Capitu. Sete anos depois, um machadiano nacional, Eugênio Gomes, vai em direção semelhante com seu O enigma de Capitu. No entanto, no livro ora resenhado é possível rastrear, antes do clássico de Caldwell, os primeiros sinais dessa suspeita, por exemplo nos textos deste machadiano quase anônimo e de nome incomum: Austregésilo de Athayde.

Carlos Heitor Cony, a esse respeito, em 1959, escreve o seguinte: “Lembramos aqui um artigo do sr. Austregésilo de Athayde que chega até a suspeitar do adultério de Capitu, tudo não passou de provas circunstanciais, suspeitas mais ou menos vagas e mais ou menos firmes”.

Enfim, o caso de Dom Casmurro é sintomático e exemplar daquilo que Ricardo Ramos chamou de “redondos equívocos” da crítica machadiana, que são muitos, e por isso geraram tantos embates, já que se trata de uma obra que, de maneira geral, não aceita consensos fáceis. Redondos ou quadrados, é flagrante a indecisão dos leitores de Machado na hora de decidir sobre certas questões de sua obra.

Uma obra bastante desigual

E uma terceira razão poderia explicar outras tantas controvérsias da recepção machadiana: a obra do nosso autor é extremamente irregular. É curioso pensar que, se Machado tivesse falecido aos quarenta anos, por exemplo, teríamos na melhor das hipóteses um escritor mediano, e não o gênio que conhecemos. Poeta considerado medíocre, Machado era um pouco melhor dramaturgo, e sua prosa até as Memórias póstumas de Brás Cubas não se destaca muito em relação ao que se fazia no Brasil. 

Naturalmente, à medida que Machado vai se tornando o maior escritor brasileiro, essas questões também vão sendo lembradas, às vezes em críticas duríssimas, como no artigo demolidor de Dinah Silveira de Queiroz, em pleno cinquentenário de sua morte. O romance Ressurreição, na opinião da escritora, seria “convencional e incômodo, como aqueles móveis do começo do século”; tanto Esaú e Jacó quanto Iaiá Garcia seriam tediosos; seu teatro, repleto de “diálogos pouco brilhantes, arrumados e insinceros”; seus textos críticos “são até de fazer mal à gente”; a poesia então nem se fala; salvando-se apenas “três romances e mais um volume de contos”.

Em suma, como todo grande clássico, Machado de Assis não apenas nos deixou uma obra brilhante e singular, mas também a recepção crítica mais animada e controversa da história da literatura brasileira. É como se esses dois volumes fossem as suas próprias leituras póstumas e mesmo o seu modo de dialogar — como autor defunto ou defunto autor — com as mais variadas gerações seguintes, coisa que o livro em questão, uma importante e original contribuição para os leitores machadianos, não só aponta como comprova. 

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).