Literatura,

Ideias por nascer

Como um experimento mental, livros de Ursula Le Guin rascunham o que está no porvir para pensar o presente

01dez2019

“Tempos difíceis se aproximam, quando precisaremos das vozes de escritores que possam ver alternativas ao que vivemos agora” — as palavras de Ursula Le Guin, ao receber o National Book Award em 2014, ressoam nítidas na atualidade. A autora foi uma voz que sempre se expressou com coragem e exatidão, uma “realista de uma realidade maior”. Ela foi responsável por inserir novas questões na ficção científica, montando narrativas com reflexões potentes que apelidou de “experimentos mentais”.

Falecida em 2018 aos 89 anos, sua obra está sendo cada vez mais lida no Brasil. O clássico A mão esquerda da escuridão (1969) completa cinquenta anos e ganha nova edição pela editora Aleph, enquanto A curva do sonho (1971) foi publicado pela Morro Branco. Refletir sobre essas duas obras juntas é um convite para compreender melhor seu método rigoroso de criação, sua busca lógica por bases concretas para termos esperança.

Ursula K. Le Guin nasceu em Berkeley, Califórnia, em 1929. Com pais antropólogos (Alfred e Theodora Kroeber), desenvolveu, ao longo da vida, um agudo senso de observação sobre alteridades. Produziu uma literatura que corporifica ideias da contracultura do final dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos: luta por direitos civis, ecologia e pacifismo.

Le Guin começou a publicar aos trinta anos poemas que se passam no mundo ficcional de Orsínia. Na mesma época, viu a própria mãe publicar o primeiro livro: a sexagenária aguardou os quatro filhos crescerem para só depois se dedicar à escrita. Ela publicou lendas dos povos originários da Califórnia e Ishi in Two Worlds [Ishi em dois mundos] (1961), best-seller a respeito da vida do último homem do povo Yahi — mesmo com um olhar estereotipado, a obra cria uma narrativa empática sobre povos indígenas e denuncia o genocídio que sofreram. Esse olhar em busca do outro e a denúncia de extermínios se encontram também na produção da filha — como em The Word for World is Forest [A palavra para mundo é floresta] (1976), romance sobre a violenta colonização no planeta Athshe, que tem seus habitantes originários dizimados.

Para além do gênero

Nos anos 1960, Le Guin publicou nas revistas Fantastic e Amazing Stories. Quem apostou em seus primeiros contos foi Cele Goldsmith, editora conhecida por incentivar nomes como J. G. Ballard e Roger Zelazny. Em 1968, publicou O feiticeiro de Terramar (que saiu no Brasil pela Arqueiro), livro que inicia uma série sobre Ged, aprendiz de feiticeiro. Essa obra influenciou a geração subsequente, como Neil Gaiman.

Foi com A mão esquerda da escuridão que Ursula Le Guin se tornou gigante. Além de receber os maiores prêmios da ficção científica, o Hugo e a Nebula, a acolhida de fãs e a atenção de todo o espectro da crítica nas décadas seguintes estabeleceram uma reflexão sobre o imaginário calcado na divisão da humanidade em dois gêneros.

O romance apresenta uma premissa simples: em determinado planeta, habitantes não conhecem a divisão entre masculino e feminino, são ambissexuais. Seus corpos são andróginos na maior parte do tempo e, ao entrarem numa espécie de cio, recebem atributos femininos ou masculinos. O livro possui uma narrativa cerzida por diferentes vozes: grande parte é narrada por um terráqueo negro, Genly Ai, há provérbios antigos do Planeta Gethen, notas da pesquisadora Ong Tot Oppong e uma narração de Estraven, habitante de Gethen.

Genly Ai deve convencer a população casmurra do planeta gelado a participar do Ekumen, uma liga interplanetária com o objetivo de ampliar o comércio no universo. Nas palavras do próprio enviado, os objetivos da missão: “Lucro material. Expansão do conhecimento. Aumento da complexidade e intensidade no campo da vida inteligente. Enriquecimento da harmonia e da glória maior de Deus. Curiosidade. Aventura. Prazer”.

Entre as aventuras de Genly Ai, que vai se deparar com ameaçadores desertos de gelo, intrigas palacianas e fuga de prisões, o experimento mental do método Le Guin arma-se: será possível ao terráqueo compreender pessoas que nunca se preocuparam com papéis sociais e com estereótipos de relações amorosas?

A possibilidade dá o que pensar. Muito da elaboração feminista até então está corporificada em habitantes de Gethen e na sua relação com o terráqueo. Mas, se Le Guin planta uma discussão fundamental, está longe de acertar, ainda mais aos olhos de 2019. Nas falhas, dá prioridade às relações heterossexuais e insiste na versão binária de gênero (por qual motivo não poderiam existir sete gêneros distintos?). Também não inova com relação à linguagem ou ao tratamento psicológico das personagens. Mesmo imperfeita, a obra fez muito. Concede base para a ficção posterior, como The Female Man [O homem fêmea], de Joana Russ (1975), e He, She and It [Ele, ela e a coisa], de Marge Piercy (1991).

Até hoje, o livro é um convite ao prazer de pensar, especular, refletir. O mais importante é realizar o experimento mental, fazer da literatura um campo de prova das ideias que ainda estão por nascer, descrever o indescritível, rascunhar o que está no porvir.

Sonhos que pedem sonhos

Se em A mão esquerda da escuridão temos um experimento mental único, em A curva do sonho isso é feito a cada capítulo, num vertiginoso convite para pensar possibilidades além do que vivenciamos hoje. A trama central é simples: George Orr (o nome alude a George Orwell), homem baixo, mal alimentado e com olhos e cabelos claros, dopa-se para não sonhar, pois seus sonhos são aflitivos. Procura, então, o dr. Haber, especialista em sonhos. Após algumas consultas, o médico compreende que os sonhos de Orr invadem e se sobrepõem à realidade conhecida até então.

O psiquiatra, diante de tal força, não resiste e começa a manipular os sonhos de George Orr, tornando-se, assim, cada vez mais poderoso. A narrativa se passa em uma Portland empobrecida, e a mudança climática é drástica. O panorama é sedutor para se jogar com a realidade. E caso Orr sonhasse com um mundo sem racismo? E se não houvesse superpopulação? E se predominasse a paz na Terra? A cada sugestão do médico ou angústia do paciente, Orr sonha um mundo novo, perfeito num aspecto e imperfeito em outros. Assim, Le Guin joga, de forma propositiva, criando utopias possíveis e impondo a necessidade de formularmos novos desejos.

Antecipa a crítica ao pensamento único conservador cristalizado pelo slogan de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Na década de 1980, o desenvolvimento planetário apresentou-se como uma inevitabilidade inquestionável diante da exploração de recursos e ligação do mundo em rede. Em A curva do sonho, essa inexorabilidade é questionada a cada sonho de Orr, em um caleidoscópio de possibilidades imaginativas. Sonhos imperfeitos que pedem mais sonhos.

Diante das duas obras, vê-se que a autora apresenta um método para construir narrativas: um tributo às ciências humanas e à criação de exercícios imaginativos. Se a ficção científica das décadas de 1940 e 1950 presta homenagem à física, à matemática e à química para caracterizar o novum (acréscimo tecnológico que anima suas metáforas), Le Guin se volta para as ciências humanas — com destaque para antropologia, ciências da religião, linguística e psicanálise. Assim, reapresenta conceitos científicos complexos em narrativas. Por exemplo, em Os despossuídos (1974), traduz as diferenças entre o que seria a constituição de uma sociedade anarquista e uma capitalista por meio do comportamento de personagens, frisando sua incapacidade de se comunicar e compreender a alteridade.

Como enxadrista, parte do seu método é posicionar exercícios de imaginação no tabuleiro da narrativa. Ela fez uso de suposições futurológicas como peças metafóricas. No prefácio è edição de 1976 de A mão esquerda da escuridão, explica que a “ficção científica não prevê; descreve”: o propósito de um experimento mental não é prever o futuro (isso seria tarefa para profetas), e os escritores devem descrever a realidade, o mundo atual.

Quem escreveu esse texto

Ana Rüsche

Publicou A telepatia são os outros (Monomito).