Literatura,

Guerra, gênero masculino

Embora duvide da divisão dos instintos entre os sexos, Virginia Woolf observa que guerrear tem sido um hábito dos homens

01ago2019

Teriam os homens alcançado os objetivos da vida, isto é, produzir boas pessoas e bons livros? No conto “Uma sociedade”, de Virginia Woolf, essa é a dúvida que incita jovens mulheres a fundar uma associação para pesquisar o estado da arte de várias atividades públicas e profissionais, até então majoritariamente dominadas pelo gênero masculino. “Reunimo-nos, assim, numa sociedade para fazer perguntas”, diz a narradora que conta as descobertas dos trabalhos de campo de suas amigas.

Quando as investigações se complexificam e o enredo atinge seu clímax, as pesquisadoras se dão conta de uma terrível contingência que não previram no decorrer dos cinco anos em que se dedicaram a entender e julgar “o mundo” masculino. Enquanto elas tentam dar cabo à interminável discussão sobre os propósitos da vida, suas vozes começam a ser abafadas pelo barulho dos homens na rua a anunciar a declaração de guerra, em 1914. Horrorizadas, dentro de casa, as personagens soltam um grito conjunto: “Por que os homens vão à guerra?”.

Mais que refletir sua inocência, o espanto das jovens parece revelar a inconciliabilidade que Virginia Woolf sublinha entre mulheres e armas. O conto, originalmente publicado em 1922, abre a coletânea inédita As mulheres devem chorar… Ou se unir contra a guerra, que inclui mais seis textos escritos pela autora entre 1920 e 1940, marcados pela reflexão sobre masculinidade e militarismo. 
O intuito do volume é reunir momentos em que Woolf antecipa termos e ideias centrais para Os três guinéus. Seu ensaio principal, publicado em 1938 e que dá nome à edição, é na verdade uma versão reduzida do livro, adaptada pela escritora para uma revista. Nele, há uma preocupação paralela ao ponto mais agudo de “Uma sociedade”: embora duvide-se de instintos essencialmente masculinos ou femininos, observa-se “na história e na biografia”, como diz a ensaísta, que “guerrear tem sido, desde sempre, hábito do homem, não da mulher”.

Suas ideias não teriam, talvez, o interesse que despertam hoje caso se limitassem a estabelecer a diferença entre os gêneros. Woolf parte dessa premissa, mas se dispõe a examinar possíveis ações de inspiração feminina para impedir a guerra iminente. Daí o pragmatismo indispensável da união, presente desde o título e que aparentemente supera a primeira reação, “as mulheres devem chorar”.

Apesar disso, tocada pela proximidade ensaística com a matéria, suas análises são atravessadas por angústia. Nas palavras que introduzem o ensaio de 1938 — ano em que o governo britânico aumentara expressivamente o orçamento para fins militares, às portas da Segunda Guerra Mundial —, a tentativa de responder de que maneira, na opinião de uma mulher, se poderia evitar a guerra, está de partida “condenada ao fracasso”.

Essa dificuldade é igualmente ligada por Woolf à ausência de direitos das mulheres na Inglaterra do início do século 20, fossem elas operárias ou “filhas de homens instruídos”. Seria preciso livrar a mente e o corpo femininos das injustiças e daquilo que denomina de “lealdades irreais” — porque irrestritas — à tradição, à religião, ao dinheiro e ao trabalho; ao pai, aos irmãos, ao marido e aos filhos. A suspeita acerca dos valores masculinos e violentos da sociedade faz com que, por exemplo, defenda-se a ocupação dos trabalhos liberais pelas mulheres em um momento; e critique-se a competitividade do mercado, mais adiante. 

Sociedade das Outsiders

Nesse sentido, provavelmente sem a intenção de fazê-lo, a tradução desta edição deu uma forma burlesca ao valor masculino do capital, quando optou por traduzir a palavra “pennies”, não por “centavos”, mas por “pênis”. Diga-se, ainda, que as escolhas da tradução pecam em fluência, impondo muitas vezes aos leitores uma reorganização mental das frases, para encontrarem na língua portuguesa uma estrutura sintática mais compreensível.

Seja como for, as inquietações relativamente às necessidades e liberdades femininas norteiam ainda três textos presentes nesta edição: o emocionante prefácio ao livro organizado por sua amiga Margaret Llewelyn Davies, composto de relatos de operárias, de 1931; “Profissões para mulheres”, uma comunicação do mesmo ano para as mais jovens integrantes de uma organização londrina que promovia empregos liberais para mulheres no país; e “O poder criativo das mulheres”, título dado a duas cartas publicadas em 1920 no jornal New Statesman, em que Woolf critica a resenha de um livro que advogava pela superioridade intelectual masculina.

Nos dois ensaios que encerram a edição, “A vida da felicidade natural” (1939) e “Pensamentos sobre a paz durante um ataque aéreo” (1940), a urgência de refrear conflitos armados ganha outra proporção. No último, escrito a poucos meses de seu suicídio, lutando para tematizar a paz sob as condições de um bombardeio alemão, Woolf retoma uma de suas reflexões de dois anos antes, ou seja, a necessidade de os homens, de quaisquer nacionalidades, também se livrarem do fardo militar. “Não é verdade que somos livres. Somos ambos prisioneiros esta noite — ele, encerrado em sua máquina, com uma arma à mão; nós, deitadas no escuro, com uma máscara antigás à mão.” E linhas depois: “Os hitlers são gerados por escravos”.

Além do esforço em considerar as medidas que a mente e o corpo femininos deveriam tomar com a finalidade de se verem livres e de evitarem a guerra, a dúvida parece ser uma das maiores potências que perpassam a coletânea. Desconfia-se de todas as instituições que até então foram lideradas por homens e levaram às tiranias e ditaduras — estatais ou familiares. Perde-se a confiança na participação feminina na vida pública e, em contrapartida, defende-se a criação de uma Sociedade das Outsiders.

À maneira da associação de jovens do conto “Uma sociedade”, fundada para fazer perguntas, Virginia Woolf puxa os fios de suas interpretações ensaísticas por questionamentos que deixa expostos aos leitores. Pergunta-se mesmo: “Quer dizer, o que é uma mulher? Eu lhes asseguro: não sei”.  

Quem escreveu esse texto

Patrícia Anette

É autora da dissertação Três ensaios sobre a Tropicália de Tom Zé: da “Era dos Festivais” à “Era dos Editais”