Literatura,

Encruzilhadas da ficção

Romance de Valeria Luiselli supera impasses políticos da literatura ao assumir que o papel do escritor é escrever bem

01set2019 | Edição #26 set.2019

Em 2014, Valeria Luiselli, escritora mexicana radicada nos Estados Unidos, viajava com a família pelo sudoeste do país ao mesmo tempo que se instaurava uma grave crise migratória. Naquele ano, mais de 60 mil pessoas tentaram cruzar a fronteira para fugir da violência na América Central, com uma particularidade: em sua maioria, eram crianças desacompanhadas.

De acordo com as leis norte-americanas, se for demonstrada a credibilidade do medo de uma pessoa de voltar para seu país de origem, ela não será deportada até que seu pedido de asilo seja avaliado. Ao voltar de sua viagem, Luiselli começou a trabalhar como tradutora voluntária em um tribunal de imigração em Nova York, participando de entrevistas em que as crianças migrantes contavam por que haviam fugido para os eua e assim tentavam provar que seu medo era “crível”. Essa experiência transformadora está na origem de Arquivo das crianças perdidas, seu terceiro (e melhor) romance. Vale a pena conhecer a trajetória percorrida desde 2014 até a obra publicada cinco anos depois, um caminho que me parece ilustrativo de algumas encruzilhadas da ficção latino-americana contemporânea e também de algumas saídas possíveis para essas questões.

Confrontada com as atrocidades narradas pelas crianças e revoltada com a xenofobia, o racismo e a intolerância que cresciam a olhos vistos nos eua, Luiselli tentou, sem sucesso, escrever um romance que desse conta desses acontecimentos. O problema, como ela afirmou em entrevistas, é que tentava usar a ficção como veículo para sua revolta, e é difícil escrever boa ficção quando o objetivo imediato é provocar um efeito político, uma reação social. Essa é a primeira encruzilhada: qual o papel de um escritor, e em particular um escritor latino-americano, numa época em que questões como o esfacelamento da democracia e a ascensão do autoritarismo se tornam mais agudas, e parecem exigir da literatura respostas imediatas?

A resposta a que Luiselli chegou pode parecer óbvia, mas talvez estejamos numa época em que é preciso repetir o óbvio: o papel de um escritor é escrever, e escrever bem. Isso não quer dizer, é claro, que uma obra de ficção não possa e não deva lidar com temas cuja relevância política é direta e imediata; mas é preciso ter humildade e baixar as expectativas quanto aos possíveis impactos políticos da ficção, que, se existirem, estarão a reboque da força literária do texto, e não o contrário.

De qualquer forma, essa constatação é mais um ponto de partida do que de chegada, como sugere a narradora do livro:  “Eu deveria saber, a essa altura, que o instrumentalismo, aplicado a qualquer forma de arte, é uma maneira de garantir resultados que são verdadeiramente uma porcaria: material pedagógico ligeiro, romances moralistas para jovens adultos, arte enfadonha em geral. Hesitação profissional: mas, pensando bem, a arte pela arte não é o mais das vezes uma exibição absolutamente ridícula de arrogância intelectual? Preocupação ética: e por que pensar que posso ou devo produzir arte com o sofrimento alheio?”.

A maneira que Luiselli encontrou de escapar de seu impasse foi deixar de lado a ficção e escrever Los niños perdidos (Un ensayo en cuarenta preguntas), de 2016, sem tradução para o português. Usando como fio condutor o questionário aplicado nas entrevistas com as crianças migrantes, ela narra diversas histórias de vida e, ao mesmo tempo, desenvolve reflexões sobre a condição de migrante a partir de sua própria trajetória — tão diferente da daquelas crianças — e também sobre os limites do próprio ato de narrar. Talvez tenha sido necessário processar sua experiência em chave não ficcional para que depois ela se sentisse livre para retrabalhá-la em algo tão “poroso e ambivalente” como um romance.

Arquivo das crianças perdidas é, em vários sentidos, uma espécie de gêmeo ficcional de Los niños perdidos, assim como Rostos na multidão (Companhia das Letras), o primeiro romance de Luiselli, era de certo modo uma contraparte ficcional de seu primeiro livro de ensaios, Papeles falsos, lançado em 2010 e sem tradução no Brasil. Mas não se trata apenas de formas distintas de abordar um mesmo tema.

O romance vai mais longe e mais fundo do que Los niños perdidos, porque consegue entrelaçar de forma orgânica e vigorosa muitos planos diferentes de narrativa, ensaio e memória. É uma road novel em que a viagem da narradora e sua família pelo sudoeste dos eua serve como moldura para articular todos estes planos: histórias dos índios apaches que viviam naquela região, histórias de crianças centro-americanas que passam pelas mais brutais provações para cruzar a fronteira, cenas de um casamento que entra em colapso, memórias de infância da narradora, comentários de seus filhos sobre tudo que acontece ao seu redor, anotações sobre livros reais e imaginários.

Urgência em escrever

O terceiro romance da autora consegue, com rara felicidade, ser complexo, inventivo e reflexivo, sem abdicar do prazer de narrar. E é nesse sentido que ele evoca uma segunda encruzilhada, que parece surgir no caminho de tantos escritores latino-americanos: como conciliar a sofisticação estética e a eficácia narrativa, a experimentação formal e a legibilidade.

Três anos atrás, pouco antes de Valeria Luiselli vir ao Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o editor da Quatro Cinco Um me perguntou o que eu tinha achado do segundo romance dela, A história dos meus dentes (Companhia das Letras). Respondi que tinha me decepcionado, pois o livro anterior havia sido muito bem recebido pela crítica e, naturalmente, a segunda obra gerou muitas expectativas. Disse a ele que esse livro me parecia frouxíssimo, um apanhado de piruetas pós-modernas e piadas sem graça, e, para mostrar que não era o único a pensar assim, enviei diversas resenhas demolidoras publicadas no México. Em resposta e como contraponto, recebi uma resenha elogiosa publicada nos eua.

Na época, fiquei com a impressão de que essa anedota era apenas mais um exemplo dos hiatos que podem existir entre a recepção de um autor dentro e fora de seu país. Só recentemente descobri que a edição em inglês de A história dos meus dentes foi parcialmente reescrita e acrescida de um capítulo, o que, ao que parece, melhorou e deu mais organicidade ao livro. Arrisco, então, a hipótese de que talvez essa anedota revele algo mais: um amadurecimento rumo a uma ficção que seja mais consistente e menos maneirista, mais necessária e menos ornamental.

Em Arquivo das crianças perdidas, Luiselli não abandona a sensibilidade pós-moderna, nem o experimentalismo, nem a metaficção; mas todos esses elementos ganham contornos novos  —  e muito mais produtivos  —  quando, em vez de se esgotarem em si mesmos, conversam de igual para igual com as várias camadas narrativas e, ao mesmo tempo, obedecem a um sentido de urgência que permeia todo o livro. Essa urgência não vem só das preocupações políticas da autora; tais preocupações não estão separadas nem são mais importantes do que as histórias que Luiselli nos conta sobre coisas tão vitais como ler e escrever, documentar e lembrar, casar e ter filhos. Aqui há uma escritora que tem o que dizer, sabe como dizê-lo e precisa dizê-lo.

O livro não seria o que é sem as crianças. Com sua franqueza, seu apetite por histórias e seu “falta muito pra chegar?”, elas nos remetem ao que a ficção tem de mais fascinante e fundamental, como neste trecho: “Me lembrei daquela vez que o Papá leu para nós uma história sobre um corpo que algumas pessoas encontraram em um descampado e foi simplesmente deixado lá, e aquele corpo nessa história ficou preso a alguma parte do meu cérebro e continuou voltando para mim, porque as histórias conseguem fazer isso, ficam grudadas na sua cabeça, de modo que quando estávamos andando no deserto, eu continuava pensando sobre aquele corpo num descampado”. Pois o livro é, além de tudo, cheio de histórias que grudam na cabeça.

Dialeto enigmático

Não posso concluir esta resenha sem falar da tradução. Pensei bastante se deveria fazer isso, pois é um fenômeno bastante comum e, assim, não seria justo pegar no pé do tradutor desse livro. Mas também não seria honesto fingir que as opções do tradutor não me incomodaram. O livro é repleto de traduções literais que se afastam das formas usuais da língua portuguesa, e isso não decorre de um capricho da autora, já que o original está escrito num inglês claro e escorreito (é o primeiro romance de Luiselli escrito nesse idioma, no qual foi alfabetizada).

Embora Arquivo das crianças perdidas possa ser lido e entendido por um leitor brasileiro sem maiores problemas, em muitos momentos não soa como português, e sim como um dialeto excêntrico e enigmático; isso é causado por estrangeirismos como o abuso na colocação de adjetivos na frente do substantivo (“nosso talvez ligeiramente chapado silêncio”, “sua subitamente civilizada irritação” etc.); por traduções ao pé da letra de expressões idiomáticas (“a coisa sobre morar com alguém é…”, “onde no mundo você estava agora?” etc.); e por muitas outras soluções igualmente literais que, além de não conseguirem transpor de forma satisfatória os efeitos produzidos pelo original, também deformam e enfeiam a língua portuguesa.

Essas estranhezas, que doem no ouvido e desviam a atenção do leitor, tornam-se ainda mais agudas quando o livro passa a ser narrado por uma criança de dez anos. Enquanto no original o vocabulário e a sintaxe são adequados a essa idade, na tradução temos a impressão de que é um adulto que está falando, perdendo-se, assim, o efeito de verossimilhança. Se é perfeitamente crível que uma criança norte-americana diga “I stood right above you”, nenhuma criança brasileira (e provavelmente nenhum adulto) diria “assomei bem diante de você”; e enquanto uma criança dos eua pode dizer “broken” ou “people-less”, uma criança brasileira da mesma idade não diria “dilacerada” nem “desprovido de gente”, e assim por diante.

É uma pena que essas opções de tradução retirem parte do brilho desse livro que merece ser lido não só por sua bem-sucedida ambição literária, mas também pela coragem de colocar essa ambição em primeiro plano, por mais terríveis que sejam os problemas ao redor; afinal, como diz a narradora, “as histórias não consertam nada nem salvam ninguém, mas talvez tornem o mundo mais complexo e mais tolerável. E às vezes, apenas às vezes, mais bonito”.

Quem escreveu esse texto

Gustavo Pacheco

Diplomata e antropólogo, é autor de Alguns humanos (Tinta da China Brasil)

Matéria publicada na edição impressa #26 set.2019 em agosto de 2019.