Literatura,

Cozinha experimental

Com estrutura de livro de receitas, coletânea de contos confirma Luana Chnaiderman como prosadora de mão cheia

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Tendo estreado em livro em 2014 (o infantojuvenil Minhocas, que saiu pela saudosa editora Cosac Naify), com o recém-lançado Os animais domésticos e outras receitas Luana Chnaiderman chega a seu quinto volume publicado — e ao quarto em apenas seis meses. “Não é que eu tive um surto criativo nos últimos tempos”, comentou a autora em um post no Facebook. A escrita madura e elaborada deste último é resultado de tempo e trabalho paciente, que dificilmente se atinge de supetão. 

Neta do intelectual e tradutor do russo Boris Schnaiderman, Luana reconheceu a vontade de ser escritora na infância, quando a literatura já fazia parte do seu cotidiano. Mestre em letras, decidiu não prosseguir na carreira acadêmica com um doutorado e se tornou professora de português no colégio Equipe, em São Paulo. 

Os animais domésticos não se mostra de cara, quer dizer, na capa. Do que se trata? Livro de receitas? Histórias de que tipo? Ou será prosa poética? O formato da edição, um pouco menor que o convencional, poderia indicar um gênero híbrido. O livro inaugura a coleção de prosa contemporânea em língua portuguesa Arranhacéu, da editora Perspectiva. No texto da orelha, a crítica Berta Waldman não entrega o gênero literário: fala apenas em “enredo” e em “personagens”, e designa a matéria do livro como “texto”. O gênero segue em aberto, e o estranhamento da indefinição cria uma atenção especial para entrar na leitura. 

A abertura se dá com “Paella”, mais para receita do que conto: “Para que não se dissolva no caldo, o peixe deve ser de carne branca e firme, fresco, os olhos vivos em gelatina, sem marcas de sangue ou tempo”. A primeira frase poderia ser lida como um passo a passo comum, mas “os olhos vivos em gelatina” são intrusos a trair a aparente objetividade. 

Subjetividade

Outros elementos contribuem para reforçar a presença da subjetividade, como “Um frango feliz, orgânico, sob o sol”, além de um parágrafo todo narrativo: “Dorothea tem vontade de vestir o polvo sobre a cabeça como se fosse um chapéu, vontade de namorar o polvo. Os tentáculos cordas nunca mais a deixariam e ela casaria com o polvo e moraria no fundo do mar. Dois quilos. Compra”. 

No sumário, aqui chamado “Menu”, “Paella” tem peso maior na hierarquia. Abaixo estão as partes: “Do mar”, “Da terra”, “Do ar”. “Paella” mistura animais e gêneros e é responsável pelo tom estranho que harmonizará as três partes.  

O ambiente das histórias é construído em bases propícias para se transformar em trampolim para o fantástico e o imponderável

As receitas entremeadas aos contos são fáceis de executar: ceviche, guacamole, alcachofras, penne com tomates. A base pede ingredientes simples, e o tom de quem está no comando é calmo, delicado e sensual: “Muita água fervente em bolhas estouradas”, “Cubos de peixe fresco. A espessura de um dedo”, “Corte as alcachofras pelo talo e esqueça-as no banho quente até que a pétala se despetale ao puxar de dois dedos”. Os contos possuem essas mesmas características, a sensualidade, a delicadeza e uma tranquilidade para narrar. O ambiente das histórias de Os animais domésticos é construído em bases propícias para se transformar em trampolim para o fantástico e o imponderável.

Cinco dos contos (“Os animais domésticos”, “Olívia”, “Samantha”, “Oceania” e “O almoço de Dorothea”) se destacam pela extensão maior e por serem mais radicais nas experimentações. Exigem fôlego, para que o leitor não se perca no ritmo vertiginoso do fluxo narrativo. O conto que dá nome ao livro apresenta a história espantosa de Eduardo, mestre empalhador de animais que surta ao se ver diante da tarefa de empalhar um salmão de sessenta quilos, pescado por uma mulher que deseja colocá-lo em cima da lareira. Eduardo se apaixona pelo salmão e toma atitudes extremas.

Elementos surrealistas e fantásticos solucionam os enredos vertiginosos, como se esses fossem explodir para dar em algo fora de si, uma compreensão fora do racional. As epígrafes que antecedem cada parte, todas extraídas de obras de Jorge de Lima, inserem o leitor na atmosfera mística e poética. “Então uma deusa pegou o arco-íris/ E fez um pente para se pentear”, versos extraídos de “Duas meninas de tranças pretas”, é a epígrafe que antecede “Da terra”. 

O último conto, “O almoço de Dorothea”, se encontra com “Paella”: “Daria para um polvo gigante abraçá-la, e daria ainda para em dois tentáculos pegar nos peitos, e daria para levar um tentáculo à boca para que ela chupasse, sem falar entre as pernas”. 

A presença de Dorothea no início e no fim, esse movimento circular, me levou ao estranhamento inicial, e me pergunto, afinal, se não seria possível pensar nele como romance. 

Quem escreveu esse texto

Mariana Mendes

É editora do site Bondelê, canal de crítica literária no YouTube.

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.