Literatura,

Bebendo com Lima Barreto

Guiado por João Antônio, ganha reedição um raro roteiro das andanças do autor de Policarpo Quaresma pelos trilhos, bares, ruas e redações do Rio

09nov2018

Em 1970, João Antônio (1937-1996) já era um escritor conhecido, graças à estreia com os contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), saudado como um retrato lírico e fidedigno da malandragem de São Paulo, dos jogadores de sinuca e dos dramas de rapazes humildes dos subúrbios. 

Ao se mudar para o Rio, em 1964, deu início a uma exitosa carreira de repórter, no Jornal do Brasil e nas revistas Claudia, Realidade e Manchete. Na Realidade, publicou, em 1968, o conto-reportagem “Um dia no cais”, marco do jornalismo literário brasileiro. A atividade teria continuidade na “imprensa nanica”, como ele próprio batizou publicações alternativas como Pasquim, Movimento e Versus

No começo de 1970, porém, uma crise de estafa obrigou o autor a se internar por dois meses em uma instituição psiquiátrica. A passagem pelo Sanatório da Muda, na Tijuca, em maio e junho, rendeu a João Antônio não apenas a oportunidade de se restabelecer, como também dois textos que se tornariam centrais para entender a relação do autor com o seu escritor de predileção: Lima Barreto. 

Um deles é a crônica de João Antônio sobre o próprio sanatório, que dá título a seu quarto livro, Casa de loucos, de 1976. A internação ecoava as de Lima Barreto, primeiro em 1914, depois em 1919-20, quando deram ensejo aos textos impactantes de Diário do hospício e O cemitério dos vivos.

O outro texto que João Antônio produziu graças à passagem pelo sanatório é este Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Com o livro, que nunca havia sido relançado desde o lançamento, pela Civilização Brasileira, em 1977, a editora 34 retoma a publicação das obras de João Antônio, interrompida com a extinção da Cosac Naify. O texto ganha posfácio e notas do crítico Augusto Massi, que também assina, com Murilo Marcondes de Moura, uma reedição de Diário do hospício e O cemitério dos vivos, pela Companhia das Letras. 

O livro de João Antônio é um roteiro dos bares, restaurantes, cafés, ruas, redações e livrarias que Lima frequentava, onde bebia e encontrava amigos e conhecidos. João Antônio mapeou os trajetos que o escritor fazia de casa, no subúrbio de Inhaúma, para o Centro do Rio, as andanças e as tertúlias de que fazia parte.

O roteiro era tanto etílico como literário e jornalístico. Ao sair da redação da Careta, começava a bebericar em um bar da rua Sachet (atual travessa do Ouvidor, entre as ruas do Ouvidor e Sete de Setembro), no mesmo prédio da Livraria Schettino. Entre os companheiros de roda estavam Coelho Cavalcanti, Moacir de Almeida, Rubens Trina e o caricaturista Jordano da Mata. Era a “a roda do Cavalcanti”, frequentada também por intelectuais como Emílio de Menezes e Alvaro Moreyra e pelos melhores artistas gráficos da época: Raul Pederneiras, K. Lixto e J. Carlos. 

Entre as livrarias, destacavam-se a Alves (futura Francisco Alves) e a Garnier, no prédio do Jornal do Commercio. A andança seguia, de botequim em botequim, até o bar da Estação Dom Pedro II, onde tomava a saideira com amigos do Ministério da Guerra. Depois, Lima pegava o trem na Central. Nos fins de semana, outros pontos entravam no roteiro, como o Café Canalejas, no Engenho Novo, e o Café Portuense, no Méier. 

A reconstituição é feita a partir do relato que João Antônio ouviu de um colega de sanatório, o professor Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, 72 anos, que conviveu com Lima na década de 1910. O escritor chega a afirmar em uma nota que nenhuma palavra na obra é sua e que seu trabalho foi o de um “montador de cinema”. 

Colagem

De fato, o relato não é uma biografia de Lima, mas uma espécie de perfil do escritor feito da colagem de muitas vozes, a começar daquela do próprio Lima Barreto. São numerosos os trechos do autor que João Antônio reproduz, escolhidos de obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Feiras e mafuás, Os Bruzundangas, Diário íntimo, Correspondência, entre outros. O leitor é apresentado ao roteiro de Lima pelas ruas do Rio de Janeiro e também a um roteiro de leitura, guiado por João Antônio, das obras de Lima e de autores que escreveram sobre ele. Desse coro, sobressai um desenho vívido de Lima Barreto por volta de 1915 a 1919, período em que se concentram as andanças. 

Descobre-se que o escritor fumava muito — cigarros Elite 18, da Souza Cruz — e não saía de casa sem chapéu. Tinha os bolsos sempre cheios de papéis e guardava o dinheiro no compartimento externo do paletó, o “bolso do lencinho”, com as notas enroladas em cilindro. Só bebia parati — nem mesmo cerveja experimentava —, mas não aparentava ficar bêbado, apenas “sorumbático”, tendendo à melancolia. Revela-se também que, apesar de condenar os trocadilhos, era bem-humorado, característica que o caráter empenhado de sua literatura, mesmo quando se dedica à sátira, nem sempre faz emergir. 

O longo e enigmático título faz jus ao caráter a um só tempo biográfico e inventivo do relato que João Antônio fez de seu escritor preferido. Foi a Lima Barreto que ele dedicou a maioria de seus livros

Assim, o longo e enigmático título — Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto — faz jus ao caráter a um só tempo biográfico e inventivo do relato que João Antônio fez de seu escritor preferido. Foi a Lima Barreto que o autor de Malagueta, Perus e Bacanaço dedicou a maioria de seus livros, com uma fórmula que se repete, insistentemente, com variações de volume a volume: “a Lima Barreto, pioneiro, consagro”. 

A ideia de dedicar os livros a Lima trai não só a admiração profunda, mas também a ideia de filiação e afinidades literárias. De fato, ambos se dedicam a elaborar, na ficção, um retrato dos marginalizados e excluídos. Tanto para um quanto para o outro, a literatura é uma espécie de missão, empenhada em denunciar as feridas e mazelas da herança histórica e das brutais desigualdades brasileiras. 

São duas literaturas que prezam a objetividade da escrita e a urgência da vida contemporânea. Como diz o autor na introdução: “Tudo de Lima é atual, de uma atualidade alarmante. […] De Afonso Henriques de Lima Barreto está tudo aí, vivo, pulando, nas ruas, se mexendo, incrivelmente sem solução”.

Uma das metáforas que João Antônio empregava para se referir aos marginalizados é a do “pingente”: os trabalhadores que se penduram nos trens, para fora dos vagões. No livro, é o próprio Lima Barreto que ganha um retrato de pingente, em suas andanças diárias do subúrbio para para Vila Isabel, Méier, Engenho Novo. 

Simbolicamente, é análoga a situação de Lima, segundo João Antônio. Na introdução, diz ele sobre Lima Barreto: “Escrever como escrevia já naquele tempo significava restrições e nomes nos índices dos jornais. Mesmo com o autor já morto. Daí a condição, em que até hoje é mantido, de uma espécie de pingente no quadro geral dos nossos valores literários”.

A edição inclui dois textos esparsos que João Antônio publicou na imprensa. “Duas bagatelas ao redor do mulato de Todos os Santos” (1982) é uma crônica que relembra a feitura do livro sobre Lima Barreto e a amizade do autor com Glauber Rocha, que tinha a intenção de rodar um filme sobre Lima. “A falsa alegria de um povo” (1995), refaz, vinte anos depois, o retrato dos tipos humanos da Central do Brasil em “Pingentes”, um dos contos-reportagem de Malhação do Judas Carioca (1975).

A condição de excluído ou de marginalizado, que a metáfora de pingente resume, talvez esteja sendo aos poucos reparada. Lima Barreto é o homenageado da Flip 2017. A deferência do meio literário, as reedições e a publicação de estudos e ensaios devem contribuir para recolocá-lo em justo destaque na tradição literária.

Quem escreveu esse texto

Bruno Zeni

É autor de Sinuca de Malandro: ficção e autobiografia em João Antônio (Edusp).