Literatura,

A periferia da periferia

Drauzio Varella encerra sua trilogia sobre as prisões brasileiras com seu livro mais necessário

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Não há como duvidar da importância dos escritos de Drauzio Varella para a divulgação do que ocorre no interior das prisões brasileiras. Seu Estação Carandiru (1999) trazia no fim do volume o relato do massacre de 2 de outubro de 1992, que revelou a falência do Estado na proteção de vidas sob sua tutela e tornou-se o marco para o desenvolvimento das organizações criminosas brasileiras.

O best-seller dava a conhecer os códigos de conduta e de honra prisionais, o cotidiano do então maior presídio da América Latina, e narrava histórias de seus habitantes, alçando os prisioneiros (e os funcionários) ao estatuto de personagens, num híbrido de crônica e diário. O relato do médico respeitado, que chancelava a versão dos mal-afamados presos sobre o evento, foi fundamental para que a narrativa do massacre se espalhasse e outras narrativas, igualmente denunciatórias, ganhassem espaço e credibilidade.

Se Drauzio tivesse parado por aí, já teria feito um bem enorme. Mas ele persistiu e, além de atuar há quase três décadas como voluntário em prisões paulistas, escreveu, sobre o assunto, Carcereiros, de 2012. Voltado ao universo do encarceramento feminino, Prisioneiras chega em momento importante. A “crise dos presídios” (na verdade, momento agudo de uma instituição que traz em si a ideia de crise) do final de 2016 — de que Drauzio trata em seu livro — e os encarceramentos da Lava Jato recolocaram a prisão na ordem do dia.

Drauzio explora a “periferia da periferia”. Se as prisões são verdadeiros depósitos de gente, as prisões femininas são ainda mais desprezadas, embora sua população venha crescendo vertiginosamente nos últimos anos, como menciona o autor. Em 2014, o Brasil era o quinto país em número de mulheres presas — em catorze anos, o aumento foi de 567% (no mesmo período, o encarceramento masculino cresceu 220%).

A verve do cronista ajuda a compreender o drama dos números. Impera uma certa casualidade na vida criminosa das mulheres: em geral, são levadas ao crime por namorados, maridos, irmãos, primos e tios. Muitas vezes, quando esses homens já estão presos. Não são poucos os casos de mulheres que nunca haviam flertado com a criminalidade e são flagradas ao tentar entrar como visita em presídios masculinos com drogas na vagina, a pedido de um parente ali encarcerado.

“O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos?”, indaga o autor. “O que representa, no volume geral do tráfico, a quantidade de droga que cabe na vagina de uma mulher? Que futuro terão crianças criadas com mãe e pai na cadeia?”. A lealdade feminina não encontra reciprocidade entre os homens: “A gratidão eterna que os criminosos do mundo do crime juram para suas amadas expira no exato instante em que elas cruzam os portões da cadeia, ainda que aliciadas por eles”.

Abandono 

O abandono perpassa o livro. Nas palavras do autor, “prisão de mulher envergonha a família inteira”: mulheres recebem muito menos visitas que os homens: é comum que sejam abandonadas pelos parceiros, pelas mães e que percam contato com os filhos. Essa situação torna aquele ambiente ainda mais fechado e voltado para si. Uma dimensão conhecida é a da homossexualidade. Drauzio nega o clichê que atribui a homossexualidade nas prisões femininas à ausência de homens: para ele, naquele ambiente fechado as mulheres talvez tenham maior liberdade para explorar a própria sexualidade.

“O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos?”, indaga o autor

Resultado de onze anos de atendimento voluntário na Penitenciária Feminina da Capital, que confina mais de 2.000 mulheres, Prisioneiras traz o ponto de vista de um observador privilegiado, que circula com segurança pelas galerias e pavilhões e goza de um respeito dificilmente alcançado por alguém “de fora”. Graças a isso, ficamos conhecendo os meandros de funcionamento do “Partido”, o PCC (Primeiro Comando da Capital), formado no vácuo da ação estatal pós-massacre, em 1993, e ao qual, evidentemente, estão submetidas também as presas. 

O mesmo PCC dono de um severo código de conduta e defensor da pena capital para os que não o cumprem chegou a ter um programa chamado Fome Zero (sic), destinado a mulheres presas por longos períodos e que, por não receberem visitas, ficavam desguarnecidas de produtos normalmente levados pelas famílias nos domingos de visita.

Estão lá, é certo, novamente as tiradas e certo gosto pelo anedótico. “Quem tem vários cunhados devia ter o direito de matar um”, diz uma delas. “Só a partir do segundo seria considerado crime.” Mas, ao contrário de Estação Carandiru — em que o anedótico, ao mesmo tempo que conferia certa graça a situações inauditas aos “de fora”, tornava caricatos, muitas vezes, aqueles personagens —, aqui a condição é tão mais dramática que o achado espirituoso pode até pontuar um ou outro episódio, mas não é a tônica da narrativa. A situação de abandono das prisioneiras é tão terrível que faz desse livro o mais duro da trilogia e, ao mesmo tempo, o mais necessário.

Drauzio alcança aqui um equilíbrio que nem sempre conseguiu nos livros anteriores. Se a zombaria e a pilhéria, presentes tanto no universo da prisão masculina quanto na feminina, tomavam a cena na voz dos detentos em Estação Carandiru, em Prisioneiras elas apenas pontuam alguns momentos, somando-se a inflexões pungentes e fazendo com que a narrativa ganhe em espessura e força.

A certa altura, o médico afirma se sentir mais seguro dentro dos presídios onde trabalhou do que nas ruas de Tóquio. Só por esse momento de subversão das expectativas do leitor de fora dos muros, a quem a prisão permanece como o eterno desconhecido (ou como bem-vindo depósito de homens), já valeria a leitura, mas Drauzio mostra que aqueles prédios encerram também mulheres — e delas ninguém costumava se lembrar

Quem escreveu esse texto

Rita Palmeira

É editora e crítica literária.

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.