Literatura,

A escritora genial

A irresistível literatura que Elena Ferrante extrai do dialeto napolitano e das ruas malcheirosas da cidade

07nov2018

Chega enfim, às livrarias brasileiras, o quarto e último romance da série napolitana de Elena Ferrante, ostentando um título que remete ao mote do livro inicial do aclamado quarteto. Por certo, não escapará ao leitor dos outros volumes que esta História da menina perdida evoca as primeiras linhas de A amiga genial, quando a narradora é informada do súbito desaparecimento da amiga com quem convivera desde a infância. Aliás, é precisamente essa notícia que leva Lenu a rememorar os pormenores de sua amizade com Lila, dando início ao instigante relato que se estenderá por mais de 1.500 páginas. 

Embora Lila desapareça aos 66 anos de idade, o fato de acompanharmos sua vida intensa e instável desde a década de 1950, quando era criança, nos inclina a empossá-la como a protagonista da “história da menina perdida”. Contudo, ainda que a hipótese seja plausível, o título carrega a mesma sugestiva ambiguidade do primeiro da série: se este não deixa claro quem é realmente a “amiga genial”, tampouco fica possível identificar a menina perdida com precisão. Ela pode ser a garotinha que efetivamente some na última narrativa, mas também outras personagens femininas que contracenam com as amigas, sem descartar a própria narradora. Não faltam mulheres perdidas nas histórias da escritora italiana e, decididamente, são elas as protagonistas da série. 

Sim, as protagonistas da série: a expressão talvez ajude a entender o sucesso que esses romances vêm fazendo nos últimos anos, no Brasil e mundo afora. Ferrante é uma contadora de histórias em regime intensivo e, sobretudo, serial: no caso da tetralogia, um livro se segue vertiginosamente ao outro e cada um deles se constitui por meio de episódios que mantêm igual modelo. 

Os depoimentos de leitura são quase invariáveis: basta entrar em contato com a trama para se desejar seguir em frente, querendo mais e mais. Joshua Rothman, em recente artigo da revista The New Yorker, alude à autora como “uma orquestradora de cenas” cujas personagens “fascinam pelas fortes emoções, em especial aquelas que parecem inexplicáveis à luz do dia”. As vidas de Lila e Lenu não deixam, portanto, nada a desejar se comparadas às de Claire Underwood, Meredith Grey, Alicia Florrick, Lady Mary Crawley, Carrie Mathison, Annalise Keating ou qualquer outra da legião de protagonistas das atuais séries audiovisuais que nos roubam o sono madrugadas adentro.

Tudo leva a crer que as narrativas seriadas em torno de figuras femininas fortes e problemáticas respondem a uma demanda ainda obscura da nossa vida simbólica, como se tocassem em algum ponto nevrálgico da sensibilidade contemporânea. Para além de tal afinidade, porém, as peripécias das heroínas televisivas pouco têm em comum com as histórias de vida contadas na série napolitana. Diferença capital, uma vez que a densidade da imaginação de Ferrante e a qualidade de sua escrita nos obrigam a deixar de lado os indicadores de popularidade para encarar a complexidade de seu romance de formação. Para compreender esses livros é forçoso ultrapassar as evidências da mercadoria e penetrar na opacidade da matéria literária.

Nápoles

Perdidas em diversos sentidos, as mulheres do quarteto se encontram sempre num só e mesmo lugar. Esse lugar chama-se Nápoles, espaço tão real quanto imaginário que, no caso, designa menos uma cidade do que um bairro. Distante da imensidão do mar, o traçado caótico de suas vielas sujas e apinhadas de gente tem fronteiras bem demarcadas, apartando a região do resto do mundo. Seus habitantes se dividem entre as numerosas famílias da classe trabalhadora e uns poucos patrões locais que mandam e desmandam, a incentivar o clima de tensão permanente em que impera a violência. Ali, “as pedradas eram uma regra”, anota Lenu ao recordar a infância no pós-guerra, e “fazer mal era uma doença”. 

É bem verdade que muita coisa muda ao longo dos sessenta anos que separam as primeiras das últimas páginas da série, mas a vida miserável da periferia prevalece. Mesmo quando borrifada com “a maquiagem da modernidade”, ela se mantém inalterada: o bairro parece “imerso numa canícula podre e malcheirosa” quando, adulta, Lenu a ele retorna. Parece ainda ter excedido o perímetro conhecido para contaminar todo o tecido urbano com o fedor de peixe, os prédios descascados, os muros encardidos, as ruas esburacadas, os bueiros entupidos, o esgoto a céu aberto. “Cada ano me parecia pior”, reitera em História de quem foge e de quem fica, para perguntar: “Como era possível resistir naquele lugar de desordem e de perigo, na periferia, no centro nas colinas, sob o Vesúvio?.” 

Questão crucial que receberá respostas diferentes das duas amigas, engendrando destinos opostos. Lila resiste e fica, enquanto Lenu desiste e foge, no afã de ganhar mundo: Florença, Milão, Turim, Roma, Paris, e o horizonte prometido pelo mar. Esboçam-se aí dois universos em tudo distintos, cada qual ostentando sua própria língua: no bairro fala-se o obscuro dialeto napolitano, pesado, grosseiro, obsceno e vulgar, mas também familiar, franco e afetivo; já no “resto do mundo” fala-se o italiano elegante, culto, literário e erudito, mas igualmente pretensioso e arrogante. O dialeto é a língua doméstica; o italiano é o idioma da escola.

Elena Ferrante trabalha o tempo todo com essa preciosa distinção linguística, vasculhando suas dimensões profundas com habilidade. No dialeto, diz Lenu, a palavra desespero significa “ter perdido toda a esperança, mas, também, estar sem um tostão no bolso”. Os significantes se dobram ao vivido, assumindo significados chulos e rebaixados, condizentes com a experiência cotidiana dos moradores do lugar. Páginas adiante, ela registra que seu universo infantil era “cheio de palavras que matavam”: o tétano, a guerra, a bomba, a tuberculose e outras tantas às quais atribui os muitos medos que vão acompanhá-la por toda a vida.

O mundo das palavras se faz aí portador de uma subjetividade de classe cuja sondagem se impõe como um dos pontos altos, não só da tetralogia, mas de toda a obra de Ferrante. Destaque-se, nessa chave, a complexidade com que as narradoras elaboram a vulgaridade cultural embrenhada na comunidade. O brega, o popularesco e o kitsch que se impõem como traços marcantes de certa cultura popular napolitana — aliás, tão bem retratada no cinema italiano dos anos 1960 — são sempre vistos sob um prisma que é, a um só tempo, crítico e amoroso. Trata-se do olhar de quem pertence e não pertence a esse meio rebaixado, com o qual estabelece, por isso mesmo, relações paradoxais.

“Eu não os suportava e, no entanto, eles não me largavam, estavam todos dentro de mim”, explica a narradora da novela A filha perdida, tentando dar conta daquele “nojo encantado”. Do mesmo modo, as personagens do quarteto enfrentam a suposta inferioridade cultural de sua origem, buscando nela um sinal de humanidade que mereça reações de amor e respeito, por improváveis que sejam. Lenu vai descobrir um deles em meio à festa de casamento da amiga, quando toma consciência de que “a plebe éramos nós. A plebe era aquela luta por comida e vinho, aquela altercação sobre quem é que devia ser servido primeiro e melhor, aquele chão sujo que os criados de mesa pisavam para a frente e para trás, aqueles brindes cada vez mais ordinários.”

Será nas entranhas dessa mesma plebe que, meio século depois, ela vai reconhecer as forças primordiais que a fazem retornar ao bairro, como testemunha na História da menina perdida: “Então me pareceu que meu mundo era e continuaria sendo para sempre o bairro, Nápoles, ao passo que o resto era como uma breve escapada em cujo clima de exceção eu podia me imaginar como de fato nunca seria”.

Anonimato

Nem tudo o que é vivido ganha genuíno estatuto de realidade e, por vezes, a fantasia torna-se bem mais real do que o próprio real. Tal é o princípio que orienta a escrita de Elena Greco — a Lenu, que narra a história —, mas igualmente a ficção de Elena Ferrante, que assina os romances, sem falar da produção literária de Anita Raja, que se descobriu há pouco ser o verdadeiro nome da autora do notável quarteto. Tal é o princípio que preside a própria vertigem de nomes e, dentro dela, o inquietante anonimato, que são parte constitutiva dessa literatura. Qual o sentido, então, do pseudônimo?

Ora, trata-se de um artifício que embaralha realidade e fantasia, retirando da narrativa as ilusões referenciais que se associam tanto à autobiografia tradicional quanto à autoficção, tão em voga hoje em dia. O expediente trabalha nos antípodas do corrente realismo psicológico, este sim produzido “em série”, ao qual falta o dom da imaginação. Assim sendo, o pseudônimo vem confirmar que o texto literário é sempre um laboratório de experiências imaginárias, onde se examina não “o que é”, mas o que poderia ter sido, ou mesmo vir a ser.

O estilo de Ferrante tem sido comparado ao dos mestres do cinema neorrealista italiano

Entende-se por que as escritoras em questão, reais ou fictícias, procuram obstinadamente um ponto onde verdade e mentira possam se encontrar — e, talvez, se apagar mutuamente. Atenta “aos soluços que começavam por ser fingidos e se tornavam verdadeiros”, Lenu sabe que é possível “gritar a verdade como se fosse uma mentira”, como assinala no segundo romance da série, não por acaso intitulado História do novo sobrenome. Afinal, “desde quando as pessoas falam verdadeiramente e desde quando as coisas acontecem de repente?” — pergunta Lila, para concluir “que tudo é uma grande confusão, que uma coisa acontece depois de outra e de mais outra”, reiterando o caráter arbitrário e serial das narrativas.

Daí o desabafo da narradora nas páginas que encerram a saga, ao confidenciar que se torna “difícil manter esticado o fio do relato dentro do caos dos anos, dos acontecimentos miúdos e grandes, dos humores”. Afinal, a trama fica cada vez mais espessa com a passagem do tempo, sobretudo porque, se de início os episódios se limitam ao “perímetro sufocante” do bairro, isso se modifica conforme os personagens conquistam novos territórios físicos e mentais. As transformações históricas da segunda metade do século 20 e do início do 21 entram em cena sem pedir licença, passando pelo sequestro de Aldo Moro ou pelo terremoto de 1980, para alcançar a queda do Muro de Berlim ou o atentado às Torres Gêmeas.

Como então dar expressão a tal emaranhado de fatos e sentimentos valendo-se apenas “do artifício da palavra escrita”? Como dar conta da confusão da vida, que só faz aumentar ao longo dos anos, sem traí-la?

O problema que inquieta Lenu — mas também Ferrante, e ainda mais Anita Raja — está formulado com clareza no primeiro livro, quando a narradora examina uma carta da amiga. Lila, segundo ela, “sabia falar através da escrita”: dotado de uma naturalidade sem par, seu texto “me arrebatava e me fascinava como quando conversávamos uma com a outra, no entanto estava perfeitamente depurado das escórias da linguagem coloquial, da confusão do discurso oral”. A conquista dessa “escrita fluente e sedutora”, cujo modelo é dado pelos escritos secretos de Lila, será objeto recorrente da narrativa, retornando diversas vezes no desenrolar da trama, como se não fosse possível contar a história a fundo sem explicar o processo formal de sua fatura.

Os críticos têm sido unânimes em afirmar a economia da linguagem e a simplicidade do detalhe como traços marcantes da produção de Ferrante, sem lhe poupar elogios. Qualidades evidenciadas desde seu primeiro livro, Um amor incômodo (1991), recém-publicado no Brasil, que se repõem no quarteto lançado a partir de 2011, cujo ponto alto é A amiga genial. A fluência e a vitalidade de seu estilo vêm provocando aproximações com grandes escritores italianos, como Elsa Morante e Giovanni Verga, e ainda com nomes contemporâneos como Karl Ove Knausgård, sem falar das recorrentes comparações com mestres do cinema neorrealista de seu país.

Nunca é fácil recompor a colcha de retalhos das influências literárias quando se está diante de uma autora do seu quilate e, por certo, não cabe fazê-lo aqui. Mas vale ao menos mencionar que, entre as grandes obras que servem de inspiração à escritora, como confidencia em entrevista à New Yorker (19 de maio de 2016), estão “as Metamorfoses de Ovídio, A metamorfose de Kafka e o extraordinário A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector”.

Perda de si

Poucas expressões contemplam tão bem o processo de perda de si vivido pela personagem de Lispector como o substantivo inventado por Lila para definir um estado que a acomete: desmarginação. A palavra comparece ao longo de toda a história, para dar conta de situações repentinas em que o contorno de coisas e pessoas lhe parece “se desmanchar como fio de algodão”. Qualquer corpo, diz ela no quarto romance, “se desmarginava e se precipitava sobre outro, era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura”, levando-a a duvidar “que a vida tinha margens robustas”.

Escusado lembrar o sentido epifânico desses momentos, já tão trabalhado pela crítica clariciana, ao qual a italiana confere uma inflexão histórica, associando-o repetidamente à “fragilidade da identidade feminina no mundo contemporâneo”. Tal é, inclusive, o sentido maior da perda que qualifica suas protagonistas.

As mulheres de Ferrante perdem e se perdem o tempo todo. Perdem o marido (Dias de abandono), os filhos (Um amor incômodo), as bonecas (A filha perdida) e também as casas e os trabalhos, os sonhos e as contas, os nomes e os sobrenomes, como deixam a ver as personagens do quarteto. Não por acaso, a palavra “perdida” se repete infinitamente na série, a ponto de ganhar um título, como se ela dissesse até mais do que diz, ocultando um sentido secreto.

De fato, as perdas femininas estão fortemente relacionadas a “segredos que se sabem só quando se é mulher”, como confia Lila a Lenu. Na verdade, muito do que elas perdem, lhes foi tirado, arrancado ou extorquido por seus parceiros masculinos.

Eis a face privada da sujeira que salta aos olhos nas ruas do bairro ou se esconde debaixo dos tapetes do casario napolitano, igualmente manifesta nas “imundícies” a que os homens obrigam as mulheres “para senti-las debaixo de si, para virá-las, revirá-las, abri-las, arrebentá-las, colocá-las aos seus pés e esmagá-las”. Eis o que eles ostentam com orgulho ao aludir à sua “virilidade transbordante”.

Importa ressaltar sua habilidade em dar forma literária às questões de gênero, sem ceder aos discursos engajados

Não é difícil perceber por que a fortuna crítica da tetralogia tem, em boa parte, inspiração feminista, seja das intérpretes que atribuem à obra as qualidades de uma “escrita feminina”, seja das que reconhecem nela a candente denúncia da violência patriarcal. Seria descabido repetir tais argumentos, que por certo merecem ser considerados. Antes, importa ressaltar a habilidade da autora em dar forma literária a tais questões, valendo-se da perda e de seus derivados como significantes vivos e abertos ao vivido, tal como ocorre com certas palavras do dialeto napolitano.

Sem ceder aos discursos engajados, a imaginação de Ferrante reage a eles com a criação de personagens que se dobram ao que lhes falta, mas com tanta intensidade que se descobrem numa situação existencial nova, desconhecida e ainda sem nome. De violentadas a desmarginadas, suas protagonistas restam como figuras instáveis, cambiantes e sem contorno, prontas a serem reinventadas.

Por tal razão, a melhor imagem das mulheres perdidas não repousa nelas mesmas, mas num obscuro ponto de fuga da paisagem que as cerca, onde jaz o monte Vesúvio. Testemunha muda do que ocorre aos seus pés, o imenso vulcão parece adormecido, mas guarda dentro de si uma descomunal bola de fogo, sempre prestes a explodir.

Quem escreveu esse texto

Eliane Robert Moraes

Crítica literária, organizou a primeira Antologia de poesia erótica brasileira (Ateliê).