Literatura,

A educação intelectual

Karl Philipp Moritz narra a importância da formação do intelecto na vida de personagem que prenuncia o anti-herói do século 20

01ago2019

Um livro do século 18 que se apresenta como “romance psicológico” já despertaria, por isso só, interesse. Afinal, estamos a mais de cem anos dos primeiros registros de estudos dos fenômenos mentais nos trabalhos de Wilhem Wundt, um dos fundadores da psicologia experimental, ou William James, que está entre os criadores da psicologia funcional. E Anton Reiser cumpre o que promete seu subtítulo: trata-se, de fato, de uma investigação impiedosa da vida mental e afetiva do personagem em seus primeiros dezoito anos de vida.

Nesse sentido, o livro de Karl Philipp Moritz (1756-93) se inscreve também na tradição dos romances de formação — ou Bildungsroman, em alemão —, visto que a história de Reiser é a da trajetória intelectual, moral e artística de um indivíduo durante a infância e o início da juventude (ainda não existia o que chamamos hoje de adolescência, termo que vai se fixar como categoria etária apenas no século 20). É, de certa forma, um romance irmão de Wilheim Meister, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), mas com algumas diferenças fundamentais.

O Reiser de Moritz é um sujeito derrotado de saída. Rejeitado pela família, inadequado em todas os círculos aos quais tenta pertencer, tem uma história que fala mais de pobreza e não pertencimento do que de desafio às convenções burguesas ou ao chamado da vocação artística (como a de Meister), o que faz dele um personagem muito moderno. Em outras palavras, Reiser prenuncia o anti-herói do século 20.

“Nessas circunstâncias nasceu Anton, e dele pode-se dizer que foi oprimido desde o berço. Os primeiros sons que seu ouvido escutou e que seu entendimento nascente compreendeu foram insultos e maldições recíprocas do casal, que se achava ligado por laços indissolúveis. […] Quando entrava na casa dos pais, entrava numa casa de insatisfação, ira, lágrimas e lamentos. Durante toda a sua vida, essas primeiras impressões jamais foram apagadas de sua alma, convertendo-se muitas vezes em ponto de encontro de pensamentos sombrios que ele não conseguiu remover com nenhuma filosofia”, escreve Moritz.

Se essa descrição de família estivesse em um romance contemporâneo, certamente poderíamos classificar tal família como disfuncional, mas, como ainda estamos longe da psicologização de todas as mazelas da vida humana, o que interessa aqui é que essa será a moldura da série de desgraças e reveses do pequeno Anton. No entanto, Moritz não empilha suas desventuras como produto do acaso infeliz. Ao contrário, tanto as circunstâncias externas quanto as internas são examinadas com muita minúcia e certa impiedade.

Luzes da educação

Aos oito anos, Anton acede ao que será uma porta de saída. Alfabetizado pelo pai, que de alguma maneira compreende seu talento em meio ao desafeto, Anton recebe as primeiras luzes da educação — e é nela que encontra, ao mesmo tempo, o acolhimento e a aguda consciência de sua diferença como indivíduo singular e de vida interior autônoma. A centralidade de seu percurso educacional — o alto-alemão, o latim, o inglês e as leituras de livros religiosos e filosóficos — toma uma boa parcela da narrativa, que vai a cada parte do livro afirmando sua condição de biografia — ou, como aponta Márcio Suzuki no posfácio, de autobiografia —, até que, em mais uma reviravolta, a Reiser sucede novo infortúnio: arrancado de seus estudos pelo pai, é destinado como aprendiz 
de um mestre chapeleiro.

É na educação que Anton encontra, ao mesmo tempo, o acolhimento e a aguda consciência de sua diferença como indivíduo singular

Desde o começo da narrativa, Moritz não nos deixa, em nenhum momento, distantes do que significa ser um sujeito sem lugar social numa nova sociedade que ainda não sabe exatamente como vai se organizar. O momento da imersão de Anton no mundo do aprendizado de um ofício manual constitui um ponto alto do romance. Anton sabe que ali reside uma possibilidade concreta de sobrevivência e, talvez, da aceitação social que tanto lhe faz falta, mas a dureza extrema das condições e das relações de trabalho cria uma nova consciência: “Essa passagem frequentemente repetida do calor para o frio provocou rachaduras na mão de Anton, pelas quais o sangue brotava. Mas em vez de abatê-lo, isso elevou seu ânimo. Olhou com um certo orgulho para as mãos, observando as marcas de sangue como muitas insígnias de honra do seu trabalho; e, enquanto ainda traziam o atrativo da novidade, esses trabalhos difíceis lhe davam um certo prazer, que consistia principalmente em sentir suas forças corporais; ao mesmo tempo, lhe davam um sentimento de liberdade, que até então não conhecera”.

Aí está, talvez, a maior distinção entre o Meister de Goethe e o Reiser de Moritz. Enquanto Meister persegue uma carreira artística negando sua condição burguesa, mas protegido pela fortuna da família, Reiser resvala todo o tempo na miséria e nas desgraças social e moral. Enquanto o personagem de Goethe é, de certa forma, ingênuo e entusiasmado, o de Moritz tem a ingenuidade e o entusiasmo repetidamente punidos com humilhações e sofrimentos. Suas aspirações intelectuais e suas paixões pela poesia e pelo teatro esbarram nas enormes limitações que a sobrevivência dura lhe impõe. Ainda assim, ele as persegue, ora arriscando seu frágil lugar social, ora as aparências da moral.

Moritz, ao mesmo tempo que classifica sua obra como uma “biografia” (“um romance psicológico é, no sentido mais próprio da palavra, uma biografia, e, até em suas mínimas nuances, uma das mais verdadeiras e fiéis representações de uma vida humana, como talvez jamais tenha existido”, afirma ele), traça um painel minucioso do que significava uma vida letrada no século 18, partindo da influência ainda muito presente da religião na educação e na moral e indo em direção às concepções mais humanistas da existência. A progressiva libertação de Reiser dos terrores religiosos e sua adesão a formas mais modernas, sobretudo quando se empenha em se tornar ator e autor de teatro, são também uma metáfora do que a geração de Moritz e Goethe empreende na Alemanha desse período.

Quem escreveu esse texto

Bia Abramo

Jornalista, é autora de Aperto de mão (Conrad).