Infantojuvenil,

Um exemplo para o Brasil

Inspiradora, história de Mandela é oportuna para discutir a justiça racial no país

29out2018 | Edição #16 out.2018

Vovô Mandela comemora cem anos de nascimento do grande protagonista da história recente da África do Sul, Nelson Mandela. A partir do diálogo travado entre seus bisnetos, Zazi e Ziwelene, e sua filha, Zindzi, avó das crianças, conhecemos uma das biografias mais inspiradoras do século 20.

O livro utiliza linguagem simples para abordar o legado moral e político de Mandela. Brincando na casa da avó, Zazi e Ziwelene acham uma fotografia de Mandela. Ficam curiosas sobre o bisavô e querem ouvir de novo sua história. As duas crianças disparam uma bateria de perguntas difíceis à avó, que não se furta em respondê-las nem doura a pílula. 

“Por que o vovô foi preso?”, é o pontapé inicial. “Foi preso porque estava lutando contra o Apartheid. O Apartheid era uma lei na África do Sul que separava as pessoas brancas e que dizia que as pessoas brancas eram melhores. O Vovô lutava para que todos nós fôssemos iguais.” 

A resposta condensa os difíceis temas que virão, sempre tratados com leveza e abertura: justiça, igualdade, discriminação, direitos, prisão, violência policial, protesto, perdão. “Significa que é preciso perguntar ‘O que é certo para todo mundo?’”. Assim definiu Zindzi a justiça.

Zazi e Ziwelene aprendem que o bisavô foi o homem que liderou protestos e manifestações contra a política do Apartheid, que o Apartheid não era justo e semeou o ódio entre brancos e negros, que Mandela passou muitos anos na prisão com a consciência de que não podia fugir, pois sua luta estava na África do Sul e sua força dentro do cárcere inspirava o povo de fora a lutar por justiça. Aprendem também que a abnegação e liderança do bisavô levaram ao fim do Apartheid e, ainda por cima, a sua eleição para presidente de um novo país. 

Em vez de vingança, Mandela chamou os inimigos para sentar à mesa e pacificar um país por meio do perdão. Tudo isso para perplexidade da população negra que o apoiava.

Essa trajetória de determinação, resistência e reconciliação de Mandela confere sentido e reforça a filosofia do ubuntu. O ubuntu significa “sou porque todos somos”, e que devemos “tratar as pessoas do jeito que nós queremos ser tratados”. É um princípio ético cosmopolita, que se propõe a reconhecer e a respeitar a humanidade de todo indivíduo e a nossa interdependência. A ilustração de Sean Qualls, que faz belos desenhos de pessoas de todas as cores, dá o tom ao conceito e à própria vida de Mandela que o encarna.

Brasil

A história comovente contada por Zindzi a partir das perguntas de Zazi e Ziwelene tem grande força moral e desperta um rico conjunto de questões que podem ser discutidas com a criança brasileira. Tivemos escravidão e a abolimos tardiamente, porém nunca tivemos algo parecido com a lei do Apartheid, certo? Mas como explicar que a população negra, correspondente a mais de metade da população brasileira, não frequente as mesmas escolas, os mesmos clubes ou os mesmos círculos sociais de uma classe média e alta predominantemente branca? Por que não moramos nos mesmos bairros? Por que no bairro de alguns a rua não é asfaltada, o metrô não chega e não há serviço de esgoto? 

A história tem grande força moral e desperta questões que podem ser discutidas com a criança brasileira

Como entender, 130 anos depois do fim da escravidão, que a população negra continue economicamente subalterna, excluída dos principais postos de poder, e a prestar os serviços mais braçais do nosso cotidiano? Será que, sem uma lei do Apartheid, não criamos outro tipo de Apartheid à nossa maneira, mais disfarçado e menos oficializado, e por isso mesmo mais difícil de detectar e enfrentar?

A sociedade brasileira não é para principiantes, e as perguntas feitas sobre a vida de Mandela precisam integrar a formação cívica de qualquer criança brasileira. 

Nunca é cedo demais para iniciar crianças e jovens na linguagem dos direitos e da justiça. O racismo, afinal, é algo que se aprende e que se herda, não se nasce sabendo. O seu contrário, tão necessário, também.   

Quem escreveu esse texto

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.