Infantojuvenil, Poesia,

Gertrude Stein para educar os ouvidos

Projeto experimental para crianças é porta de entrada para universo poético da autora modernista

13nov2018 | Edição #6 out.2017

Alguns livros têm uma ênfase poética tão pulsante que parecem querer extrapolar a leitura feita em silêncio. São livros cheios de som, de ânimo capaz de revirar o que está escrito para ganhar novos sentidos ao serem lidos também para fora. É possível saber quando um livro quer, digamos, conversar com o leitor em voz alta, quando ele faz um convite à vocalização, isto é, quando o timbre e a forma que dormem sob as letras mudas pedem voz viva. O leitor passa a ser, natural e voluntariamente, porta-voz de um texto, e a fala que ele encarna é necessária sobretudo para se atingir os graus exigentes de abstração que esse texto impõe.

Essa é a primeira e incontornável sensação durante a leitura de Para fazer um livro de alfabetos e aniversários, segundo livro infantil da poeta, ficcionista e escritora de teatro norte-americana, Gertrude Stein, que foi rejeitado inúmeras vezes pelas editoras desde quando foi escrito, em 1940, até sua enfim publicação, em 1957, nos Estados Unidos. Este livro que fala alto é um livro póstumo, o caso clássico de um projeto experimental de grande magnitude cuja autora não achou meios de conseguir editar durante a vida. Ele chega ao Brasil só agora, sessenta anos depois, em acurada tradução de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin.

Trata-se de um extravagante passeio pelo alfabeto, no qual cada letra está ligada às iniciais dos nomes de quatro personagens, ou tem alguma conexão com as datas de seus aniversários — um alfabeto e um nome são bens e não se pode ir além, e os aniversários são importantes, para saber quem é quem. Composto por 26 contos circulares, rimados às vezes sim e às vezes não, e onde a palavra poética tem um papel central, é um livro que reitera o estilo cunhado por Stein, de viés modernista: não é convencional, não tem começo, meio e fim, usa o recurso da repetição, abre mão da pontuação e, como a autora mesma dizia, foi escrito em “presente contínuo”.

Todas essas tintas, mescladas à liberdade narrativa tão cara à Stein, compõem um tom que privilegia a imaginação e a criatividade do leitor em resposta à expectativa do que esses textos podem significar. À tradição de Lewis Carroll, eles são nonsense, desatinados, sem pudores.

Poder encantatório

Stein expõe, inclusive, sua predileção por certas letras do alfabeto. Como era de esperar, não se trata de um livro fofo, com moral da história, é um livro que, de antemão, não foi feito para agradar crianças e adultos, mas tem um poder encantatório. Tendo sido escrito durante a Segunda Guerra Mundial, a guerra é também um personagem de alguns contos, é nítida sua astúcia, inteligência e sensibilidade necessárias à formação de um leitor e, claro, à sobrevivência.

Quem já teve a oportunidade de escutar as gravações de Gertrude Stein lendo seus próprios textos conhece a dimensão oral de sua escrita. Sua performance vocal, cheia de teatralidade, resvala na força sedutora de que só é capaz uma palavra bem dita. Em Para fazer um livro de alfabetos e aniversários o leitor é chamado a conhecer um mundo mirabolante de palavras extremamente musicais, um exercício linguístico desafiador no qual, ao se deixar de lado a afetação e a genialidade impostas pela autora, é possível não se sentir soterrado pelas canções dessas narrativas. Por outra vista, são textos muito intensos, que podem soar confusos, quase ameaçadores, se expostos a um ouvido de pouca escuta e generosidade. Então conclui-se que estamos diante de um livro que também é capaz de educar ouvidos.

Livro é um jogo cujas regras devem ser aprendidas para que se possa desfrutar de sua inventividade

A própria Gertrude Stein, numa edição de seu primeiro livro infantil — The world is round (O mundo é redondo, publicado em 1939 e ainda inédito no Brasil) —, faz um alerta sobre um método de leitura que pode ser utilizado em seus textos: “Não ligue se não há vírgulas, leia as palavras. Não se preocupe com o sentido, leia as palavras rapidamente. Se não der certo, leia mais rápido e mais rápido ainda até você não conseguir mais”.

Este livro, cheio de artefatos literários, requer uma leitura paciente, e também funciona como um jogo que deve ser jogado aos poucos para ir conhecendo suas regras lentamente e, assim, nesse exercício, conseguir desfrutar de sua inventividade e de seu vocabulário falastrão.

Mais de cem personagens passeiam pelo livro, e os contos são frequentados por animais de todo tipo — zebras, gatos, coelhos, pirilampos, bodes, galinhas. Uma dupla de cachorros hilários faz bagunça em vários dos textos. Há também uma infinidade de objetos improváveis que ganham vida: raios, galhos, reis, relógios, buracos, frangos, sanduíches e instrumentos musicais. Tem o Ativo, cavalo que muda de nome sozinho para Coice; Bacana, o menino que não nasceu no dia do seu aniversário; Dileta, que apesar de estar viva, nunca nasceu; Edite, que nasceu com um mês de atraso; o confuso Orlando, que reage a tudo do mesmo jeito, exclamando “Minha nossa!”; o Liriozinho, que tinha um aniversário mas não tinha um nome, então todos o chamavam Liriozinho; Kelly Leitão, que sabia fazer carinho e cocada, e fazia aniversário sempre no mesmo dia e no mesmo ano, até que mudava a data. De todos os contos, e por que não dizer, poemas, há um que chama especial atenção por sua circularidade rítmica, e o apuro com que foi construído originalmente ganhou igual capricho na tradução, a história de Isaac: 

Isaac dizia que ele era melhor mas será que era. Isaac dizia que se sentia melhor mas será que se sentia. Isaac dizia que crianças devem ser vistas e não ouvidas mas será que não deviam. Isaac dizia que oitenta é mais do que quatro mas será que é. Isaac dizia que tinta é mais preta do que azul mas será que é. […] Isaac dizia que o sim é mais rápido do que o não, mas será que é. Isaac dizia que manteiga é mais branca do que a neve mas será que é. Isaac dizia que as folhas são vermelhas mas será que são; Isaac disse que tinha lido que estaria morto se tivesse saído, e dizia que dizia mas será que teria. […] Isaac dizia que seria engraçado se ele ficasse a noite toda acordado mas será que seria. Isaac dizia que quando ele corria ele sempre se ia, mas será que se ia. […]

Especial Infantojuvenil: oferecimento Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Bruna Beber

Escreveu Ladainha (Record) e Zebrosinha (Galerinha).

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.