Infantojuvenil,

Uma transcriação feminina do anjo da guarda

Uma história tradicional tibetana é ponto de partida para esta narrativa poética sobre cumplicidade

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

Um conjunto de páginas duplas ilustradas introduz a narrativa, sem palavra escrita. A primeira imagem é ambígua, em perspectiva pouco comum. Parece vista de baixo, por alguém que não possui, ainda, estatura suficiente para olhar de frente o que quer que ali esteja: a morte, a beleza, uma rocha. É para uma floresta escura, com troncos largos, densa folhagem, flores exuberantes e um pássaro azul que somos levados ao abrir as primeiras páginas de A mulher da guarda.

Há, ainda, uma criança que espia por entre colunas, um cavalo azul que não conseguimos avistar por completo e um enigmático olho na palma de uma mão feminina, portando uma chave. As imagens contêm fragmentos de histórias e se espelham de modo quase simétrico. Quase, porque o que refletem nem sempre é semelhança. Há, aqui e ali, por entre os detalhes camuflados no preto e branco, um ponto de fuga para o azul — do firmamento, da liberdade, da solidão. Impossível não  se lembrar dos versos do poeta mato-grossense Manoel de Barros: “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul —/ Que nem uma criança que você olha de ave”. 

‘Eu não gosto de mães, porque as mães morrem’ é uma das frases mais fortes do livro’

Avançando pelas mais de cinquenta páginas escritas encontram-se pistas para uma possível tradução daquela primeira imagem ambígua que abre o livro. Vista por Jacinta, uma criança de oito anos com pouco mais de um metro e trinta de altura, a mãe morta adquire proporções distorcidas. Orna-lhe a fronte uma grinalda de flores miúdas. Uma rosa imensa cobre-lhe o rosto e o cabelo negro ondula sobre uma superfície acolchoada. As mãos repousam sobre o tronco. E, diante de inconcebível cena, Jacinta pergunta: “Como ela vai respirar?”.

Sem ar também ficamos nós, leitores, arrebatados pela destreza narrativa da chilena Sara Bertrand, muito bem acompanhada pela arte gráfica de Alejandra Acosta, na edição originalmente lançada pela editora colombiana Babel abrindo a coleção Fronteira Ilustrada, sob regência de María Osório. A junção de tão talentosas mulheres rendeu ao livro a máxima premiação na Feira de Bolonha, em 2017, o New Horizons Bologna Ragazzi Award. No Brasil, o livro foi recém-lançado numa parceria entre o Selo Emília e a Solisluna Editora.

É feminina também a voz narrativa predominante. Difícil, na verdade, falar em uma única voz, já que, no mínimo, três histórias se entrelaçam. O livro é inspirado na história de Achi Chokyi Drolma, que faz parte da tradição popular tibetana. Trata-se de uma avó com poder de cura, ancestral direta do fundador da linhagem Drikung Kagyu. É essa personagem que inspira a “mulher da guarda” anunciada no título. Aquela que guarda e protege, em vigília constante, guiada por um terceiro olho. Na tradição tibetana, a mulher percorre longas distâncias a cavalo para atender a todos que dela precisem, onde quer que estejam. Uma espécie de transcriação feminina do tradicional anjo da guarda.

Uma infância potencial

A segunda história, que com essa se cruza, é narrada por Ana, avó da menina Jacinta, algo que só descobrimos nas páginas finais do livro. Ela conta do encontro de Jacinta com a mulher mais bonita do mundo, em cima de seu cavalo azul — possivelmente a mulher da guarda, com seu terceiro olho que tudo vê na palma da mão e na outra segura uma tigela dourada. Fala também da solidão vivida por Jacinta após a perda da mãe, quando passou a cuidar dos irmãos gêmeos, já que o pai ficava o dia todo no trabalho, assim como de encontros e desencontros, a exemplo dos que a garota tem com Martim, o menino da casa ao lado, que tem mãe e um quarto cheio de brinquedos.

A voz feminina dessa avó narradora traz a sabedoria ancestral de Achi. Sabedoria que se expressa na perspectiva narrativa marcada, sobretudo, por intimidade e intensa amorosidade. A avó conhece profundamente os sentimentos de Jacinta e conduz o leitor até eles como se estivesse imersa no fluxo de pensamento da personagem, a ponto de, em alguns momentos, termos a impressão de que a história está sendo narrada em primeira pessoa. Uma narradora portadora do que Bachelard chama de “núcleo de infância, imóvel, mas sempre viva, disfarçada em história quando a contamos”. Não se trata de reconhecer em Jacinta traços hereditários e, a partir deles, narrá-los, mas de reencontrar, na palavra poética, “uma infância potencial que habita nossos devaneios […] e vem animar a vida adulta”.

Essa voz narrativa que conta ao leitor o que foi contado à neta parece frequentar um campo propício para o sonho. Não é raro encontrar expressões como “gostou de imaginar que” ou “gostou de pensar que” introduzindo parágrafos que descrevem o que se passa nesse espaço fronteiriço entre a fantasia e o que chamamos de realidade. A memória é expandida em imaginação, e a realidade, subvertida pelo desejo, como no trecho: “Gostou, então, de imaginar que se sua mãe estivesse viva, ela saberia. Gostou de pensar que as mães sabem tudo. Embora sua mãe fosse a lembrança de uma ordem: ‘Cuide de seus irmãos’. Foi o que ela repetiu a última vez que a viu”. 

Mais azul

A terceira história vem marcada ao longo do livro pela cor azul. É a história que Jacinta narra aos gêmeos José e Joaquim, seus irmãos, ao colocá-los para dormir, à noite. Uma história que, segundo ela, não é nem de gigantes, nem de monstros, é a história “D’Eles”. Nessa narrativa, irmãos vivem no topo de árvores enormes, à espreita do que se passa na casa “D’Eles”, e um dos irmãos tem justamente o nome do vizinho, Martim.

O cruzamento entre realidade e fantasia atinge seu ápice nessa fábula fraterna criada por Jacinta para fazer dormir seus irmãos. Uma história sobre irmãos para irmãos, sobre vizinhos que se tornam personagens de contos alheios, sobre elaborar medos e poder habitar espaços em que sombras não se transformam em fantasmas. Uma história, ainda, em que é possível “imaginar a tristeza” e pensar que “a saudade tem a forma alongada das sombras”.

Às três histórias sobrepostas em camadas sutilmente penetráveis, pode-se acrescentar, ainda, as histórias não ditas, mas anunciadas, do pai viúvo e dos irmãos órfãos. É um deles que diz uma das frases mais fortes do livro: “Eu não gosto de mães, porque as mães morrem”. Dessa vez, impossível não lembrar dos versos de Carlos Drummond de Andrade: “Por que Deus permite que as mães vão-se embora?”. Se muitos versos vêm à mente quando se lê A mulher da guarda é porque há, ali, terra fértil para fazer brotar poesia.

Somando-se a todas essas histórias, encontra-se a narrativa visual que abre e fecha o livro. Fragmentos de algumas imagens apresentadas no conjunto inicial das páginas ilustradas se revelam integralmente nas páginas finais. Depois de atravessar a palavra escrita, podem-se ver, de corpo inteiro, o cavalo azul, a mulher mais bonita do mundo e a criança em seu colo. Há mais azul nas imagens finais e, portanto, mais pontos de fuga para o firmamento, a liberdade, a solidão. E, certamente, há um leitor com mais olhos para ver o que já estava lá.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.