Infantojuvenil,

Gente desapressada e curiosa

Nova editora lança preciosidade dos anos 1960 que valoriza interação entre texto e ilustração

01out2019

O livro não diz, mas desconfio que Luís Rodolfo seja uma criança que gosta de ler. Por que outro motivo ele estaria sempre sozinho, melancólico, alheio ao que acontece ao seu redor e — o mais importante — por que se entregaria tão facilmente ao próprio universo mental? Sentado na calçada, a cabeça pesando sobre os ombros, ele se ocupa unicamente com o ato de fantasiar. Luís Rodolfo não acha graça nas outras crianças, como não se interessa pelo gato laranja que mia ao seu lado, nem pela briga da vizinha com o carteiro na soleira da porta. Só quer saber de monstros, astronautas, espiões, leões, tigres e piratas. Nem ao menos percebe quando uma árvore às suas costas cresce e dá frutos, quando um ladrão é perseguido (e pego) pela polícia, quando uma bruxa aparece atrás de uma janela e depois de outra, e outra; quando um paraquedista pousa na sua frente, quando tudo dá errado, quando tudo dá mais errado ainda, quando tudo dá certo, quando a chuva cai. 

Ninguém o entende. Às vezes até Ellen Raskin (1928-84), a autora, fica sem jeito e finge que não é sua amiga: “Este livro é dedicado a Susan, Otto, Luca, Cecília, Pat, Maria, Stela, Tom, Felipe e a todas as crianças do mundo inteiro. Menos ao Luís Rodolfo. Ele é chato demais!”. Pobre Luís Rodolfo. Aliás, pobre Chester Filbert, seu nome no original, ainda mais coitado. Mas nós o entendemos. Sabemos como é. Também somos crianças esquisitas e o mundo não nos satisfaz. 

A mulher que fazia livros

Este livro, de 1966, é o primeiro que Ellen Raskin assinou como escritora, além de ilustradora. Nascida no Wisconsin, um ano antes da crise de 1929, morreu em meio à Guerra Fria. Foi uma das figuras mais celebradas da literatura infantil norte-americana, sobretudo graças ao sucesso de O jogo de Westing (1978), romance-charada com dezesseis protagonistas, que trata de crianças, adultos e um montão de dinheiro — “à medida que eu escrevia esse livro, ele ia passando a perna em mim. O que começou sendo um elogio à classe trabalhadora virou, sem querer, uma ode ao capitalismo” (virou e não virou; mas a autora é bem-humorada demais para ser totalmente sincera). 

Raskin publicou dezesseis livros e ilustrou algumas dezenas, como a primeira edição do clássico Uma dobra no tempo (1962), de Madeleine L’Engle. Descrevia-se, antes de mais nada, como bookmaker — não autora ou artista, mas sim fazedora de livros. Cuidava de todas as partes de suas publicações, dando atenção e importância ao que pareceriam ser detalhes. Certa vez, pediu que descartassem uma tiragem de 15 mil exemplares porque as margens do papel estavam meio centímetro menores do que o previsto. O tamanho, dizia, tinha que ser confortável para que o dedão de uma criança pudesse segurar o livro sem tapar o texto. Não era um simples capricho — decisões como essa ilustram o grau de respeito que tinha por seus leitores (é uma alegria, portanto, vê-la publicada no Brasil pela pequena editora Amelì, responsável por essa e outras preciosidades recentes). 

Nenhuma obra que escreveu tem mais de duzentas páginas, limite estabelecido porque entendia que um escritor nunca deve ser tomado de admiração pelo próprio trabalho a ponto de desconsiderar a paciência do leitor. E quando seus parágrafos ficavam longos demais, ela tratava de quebrar os blocos de texto com jogos visuais, listas, asteriscos e tantos outros elementos singelos que transformam as páginas em pequenos objetos de experimentação e graça — nos fazem gostar de olhar para elas.

‘Meus livros são mais complicados para os adultos do que para as crianças’, dizia a autora

Aliás, se digo “nós”, é porque suponho que gostaríamos também de ser incluídos na lista de leitores ideais de Ellen Raskin. Quando lhe perguntavam qual era seu público-alvo, respondia que deveriam ser pessoas “novas o bastante ou curiosas o bastante para ler bem devagar. Quanto mais devagar, melhor”. Na falta de infância e suas qualidades orgânicas, ficamos com a calma e o interesse pelo mundo — qualidades que, gradualmente, e com alguma sorte, vamos aprendendo a cultivar. É só isso o que Raskin pede de nós; mas é difícil imaginar uma categoria humana melhor de pertencer do que esta. Um ideal de vida: sermos gente desapressada e curiosa. 

Encantamento

Nunca acontece nada na minha rua é um livro pequeno, de 32 páginas, que não conseguimos terminar muito rapidamente. De fato, ele dita seu próprio ritmo, exige que desaceleremos o passo. A única maneira de lhe dar sentido é indo e voltando nas páginas, acompanhando texto e desenho em paralelo, encaixando, pelo pensamento, as partes que se iluminam mutuamente. É nesse cruzamento que Raskin cria seu modo particular de encantamento do mundo. E suas piadas. 

Os desenhos narram uma história complementar à das palavras, e as ilustrações mais rebuscadas e vivas são justamente aquelas que estão mais distantes de nós. No primeiro plano, onde Luís Rodolfo se senta com o olhar perdido no vazio, as coisas são geométricas e simples. É no segundo plano que as linhas se animam, ficam rocambolescas e cheias de divertimento. Precisamos nos deter para ir à procura delas e das aventuras que contam. “Meus livros são mais complicados para os adultos do que para as crianças”, dizia a autora, “porque as crianças não sentem vergonha de parar e reler
uma parte que já leram.” 

E não sentem vergonha de ter uma imaginação — aqui entra Luís Rodolfo. Afinal, que importa para ele que o mundo esteja sempre girando se a mente consegue fazer muito mais do que girar? Gira, pula, voa, morde, às vezes corre atrás do próprio rabo e se enrola em si mesma para dormir. 

Fechamos o livro. Podemos seguir imaginando-o dentro de nós. O que ele nos oferece, afinal, é isto: um lugar inédito para frequentarmos, a “Rua das amoreiras, 52”, uma esquina a mais para a imaginação. Olhamos para ela: tem tanta coisa aqui para ver.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Sofia Nestrovski

É mestre em Teoria Literária pela USP.