Infantojuvenil, Política,

Animais nas urnas

Democracia e eleições diretas são solução para os bichos da selva totalitária

29out2018

A associação é imediata: ao ler o título do livro infantil Eleição dos bichos, é difícil não lembrar do clássico de George Orwell de 1945, Revolução dos bichos, uma alegoria sobre corrupção e traição dos ideais comunistas durante o regime stalinista na antiga União Soviética. 

Num mundo brutalizado pela guerra e dividido em dois grandes blocos com soluções econômicas opostas para o desenvolvimento da vida em sociedade, o escritor britânico não estava tomando necessariamente um lado. Na verdade, estava nos alertando para os horrores do totalitarismo, para as consequências da concentração de poder nas mãos de poucos, enfim, para a exclusão da maioria no processo de decisão de um país ou comunidade.

Eleição dos bichos começa num ambiente totalitário, numa monarquia em que o Leão, o rei da selva, passa a ser questionado por ter desviado um rio inteiro só para fazer uma piscina em frente à sua toca. Por que ele pode mandar e desmandar? A bicharada sai em protesto. Mas o Leão nem liga. Por que então não criar um sistema em que todo mundo possa decidir quem vai comandar os animais? E por que não trocar esse comandante a cada primavera? 

A partir daí os autores retratam a experiência eleitoral, com candidatos, plataformas e regras de disputa. O próprio rei da selva entra na corrida para manter o poder, afinal, “em time que está ganhando não se mexe: pela tradição, vote Leão”. A Macaca aposta na mudança, dizendo logo: “primeiramente, fora, Leão”. A Cobra apela para sua relação com o povo, porque “juntos somos fortes”. A Preguiça pede “calma e paciência” para chegarmos lá. É uma campanha cheia de contratempos, mas no fim a Coruja conta os votos e decreta o resultado. 

A isso damos o nome de democracia. Básico, não? Ótimo para introduzirmos na conversa com as crianças valores consolidados, para que elas possam começar a pensar na vida em sociedade, num progresso contínuo confirmado pela prática acumulada. 

Prática essa que passa por um novo teste nestas eleições de 2018 no Brasil, um tema que invade as casas pela TV, pelo rádio, pela internet e pela conversa dos adultos num clima de absoluta normalidade, certo? Infelizmente, não.  

Mundo dos adultos

Os preceitos do livro infantil não são mais consensuais. Talvez nunca tenham sido. Mas agora estão sendo contestados de um jeito cru e assustador. O país viu nos meses que antecederam o início oficial da campanha de 2018 um movimento de caminhoneiros que pregava, em parte de suas barricadas, uma intervenção militar no governo. Um dos candidatos favoritos à Presidência demonstra publicamente pouco apreço à democracia e exalta torturadores de um regime de exceção. Seu vice fala abertamente em possibilidades de autogolpe. O chefe do Exército verbaliza ameaças de interferir na política. 

Por que o Leão, o rei da selva, pode desviar o rio para fazer uma piscina na frente da sua toca?

Os partidos pouco ajudam a acalmar os ânimos, seja pelas práticas pouco republicanas, seja pelo baixo apreço às regras do jogo. Quatro anos atrás o resultado das urnas foi questionado. O país entrou numa grave crise institucional. Ainda hoje, há políticos que colocam em xeque a nova tentativa de pacificação nacional por meio do voto. E é aí que está a questão central: o Brasil e os brasileiros estão dispostos a lidar com o resultado das urnas?

Eleição dos bichos é o segundo livro de uma série sobre política dirigida ao público infantil. O primeiro foi Quem manda aqui, de 2015. As obras contam com a participação de crianças, que ajudam a dar rumo às histórias em oficinas realizadas com os autores. Chama a atenção que, depois da eleição da floresta, apesar de protestos da Macaca, todos se juntam para ouvir o discurso da Preguiça, a vencedora. O Leão até oferece ajuda. 

Ele não coloca fogo na floresta nem tenta comer os outros animais. Ele quer apenas participar da nova administração. Algo legítimo. Isso é política. É a lição das crianças para os adultos que vão às urnas neste ano.  

Quem escreveu esse texto

Conrado Corsalette

Jornalista, é cofundador e editor-chefe do Nexo.