História,

Uma vida para a história

Embora biografia de Hobsbawm se concentre em suas escolhas, o livro não deixa de dar a atenção devida aos contextos em que foram feitas

01dez2021 | Edição #52

O público brasileiro, que deu a Eric Hobsbawm seus mais estrondosos sucessos editoriais, ganha agora uma biografia volumosa, rica em detalhes, desse que foi um dos principais intelectuais do século 20. Richard Evans, autor do livro, é ele próprio conhecido dos aficionados da história do Terceiro Reich, tema de uma trilogia sua também publicada no Brasil pelo selo Crítica, da editora Planeta.

O livro condensa uma quantidade impressionante de informações que permitem um melhor entendimento da trajetória de Hobsbawm e das grandes motivações intelectuais e políticas por trás de sua obra. É um complemento importante ao ótimo Tempos interessantes, autobiografia de Hobsbawm publicada na Inglaterra em 2002 e editada no Brasil no mesmo ano. Se, no entanto, Hobsbawm pretendia falar de si enfatizando como os acontecimentos históricos do século 20 moldaram a sua personalidade, a ambição de Evans é a de inverter a perspectiva, concentrando seu olhar sobre as escolhas do personagem — na carreira, na política, nas relações afetivas.

A rigor, nem Hobsbawm nem Evans foram fiéis a tais intenções. Melhor assim. Afinal, não há como pensar o percurso do autor de A era dos extremos sem considerar a crise na República de Weimar, a chegada dos nazistas ao poder, o conflito militar iniciado em 1939, a Guerra Fria, a derrocada do comunismo… e muito menos sem levar em conta o modo como Hobsbawm, da juventude à maturidade, se houve com os constrangimentos e as possibilidades de vida postos a ele graças a passagens cruciais do século 20. Tanto na obra de Evans quanto em Tempos interessantes emerge uma personalidade que procurou ativamente as grandes questões da história intelectual, política e cultural de seu tempo, atracando-se ferozmente com elas por meio da atividade de historiador.

O livro de Evans não é voltado a acadêmicos, mas ao amplo público leitor da obra de Hobsbawm. Mesmo assim, ele traz uma tese: aquilo que totaliza e dá coerência à experiência de vida desse historiador longevo é sua adesão ao comunismo, ocorrida em Berlim no início da década de 30. Nascido em 1917 em Alexandria (seu pai era funcionário do Serviço Postal e Telegráfico durante o protetorado inglês no Egito), Hobsbawm teve uma vida afetiva marcada pela perda precoce dos pais. Tendo passado a infância em Viena, ele se mudou com sua irmã para a casa de tios em Berlim após a morte da mãe. Foi a camaradagem comunista berlinense que o salvou da ruína emocional.

Os desdobramentos disso são diversos. A militância política, particularmente intensa nos anos vividos como estudante de graduação em Cambridge, é evidentemente o mais óbvio deles. Em termos intelectuais, o encontro com o marxismo é definidor. O adolescente Eric era um leitor compulsivo, como revelam seus diários de juventude. O marxismo aguça esse traço de personalidade, porque a sensação de pertencimento proporcionada pelo comunismo era alimentada pela familiarização com os textos de Marx, Engels, Lênin e cia. O esgarçamento das relações do jovem erudito com a família pouco intelectualizada, a insegurança quanto à própria aparência física, a inexistência de laços estáveis de um adolescente recém-chegado à Inglaterra: tudo isso era contrabalançado pelo marxismo, fonte de certezas em um mundo imprevisível, tanto no plano íntimo quanto no plano econômico-político (o descrédito quanto ao capitalismo de mercado se manifestava à esquerda e à direita Europa afora nos anos 30).

Materialismo histórico

O impacto do materialismo histórico sobre Hobsbawm foi duradouro. Marx formulou no prefácio da Contribuição à crítica da economia política (1859) a ideia de que as relações que homens e mulheres estabelecem no processo de produção da vida material é determinante para todas as instâncias do mundo social. Hobsbawm nunca vestiu a carapuça do economicismo, mas construiu um estilo de pensamento fiel àquela formulação marxista.

Aquilo que dá coerência à experiência de vida desse historiador longevo é sua adesão ao comunismo

Como lembra Evans, os três primeiros livros da tetralogia sobre o mundo contemporâneo (A era das revoluções [1962], A era do capital [1975] e A era dos impérios [1987]) seguem a estratégia marxista clássica de explicação histórica a partir das bases materiais da vida social. E, mesmo antes de ser conhecido por suas sínteses históricas magistrais, Hobsbawm afirmou-se como um historiador de história econômica. Embora tenha posteriormente relaxado seu apego à causalidade econômica dos processos históricos, ele nunca deixou de valorizar a obra de Marx como fonte de ferramentas essenciais para o trabalho dos historiadores: foi o filósofo alemão, afinal, quem pontificou contra a naturalização das relações sociais na sociedade burguesa e consagrou a ideia de que as contradições nessas relações são geradoras de grandes transformações históricas. Para um historiador especializado no século 19 europeu, do desenvolvimento acelerado do capitalismo industrial e da gênese da organização política da classe trabalhadora, é difícil encontrar outro modelo explicativo à altura.

Na vida de Hobsbawm, sugere Evans, as simpatias políticas pelos oprimidos articulavam-se a interesses de pesquisa pelas experiências das classes populares. Seus primeiros trabalhos de fôlego trataram da gênese do movimento operário inglês. Adiante, Hobsbawm voltou-se para o estudo do banditismo social e outras formas de movimento social “arcaicos” nos séculos 19 e 20. Tudo isso em meio às frequentes idas aos clubes de jazz do Soho londrino, quando se deleitava e refletia sobre um gênero musical abominado tanto por colegas acadêmicos quanto por camaradas de Partido (durante anos usou um pseudônimo para escrever sobre jazz). Hobsbawm tornou-se então um expoente daquilo que seu colega E. P. Thompson chamaria de “história vista de baixo”, uma história centrada nas visões de mundo e nas ações das “pessoas comuns”, que trabalhavam no cotidiano longe dos centros de poder político e econômico das mais diversas sociedades.

Mais do que uma marca pessoal do biografado, o marxismo, e a legitimação da história econômico-social que ele implicava, foi a arma de uma geração de historiadores contra a historiografia “tradicional”, prioritariamente voltada a eventos e grandes personalidades políticas. Com colegas marxistas, todos ligados ao grupo de historiadores do Partido Comunista Britânico, Hobsbawm fundou em 1952 a Past & Present, à época a revista mais inovadora da historiografia de língua inglesa por estimular um tipo de investigação histórica sensível a outras ciências sociais. Além de ser uma lufada de ar fresco em termos propriamente intelectuais, a p&p mobilizou uma rede internacional de historiadores que colaboraram com artigos ou que se tornaram leitores assíduos, rompendo com o paroquialismo dos especialistas em história política e constitucional inglesa que encontravam guarida na veterana English Historical Review. Essa característica se deveu muito ao envolvimento de Hobsbawm com a revista. Filtrado pela experiência de alguém que antes dos vinte anos já vivera em quatro países diferentes, seu marxismo ensejou ainda um cosmopolitismo intelectual notável. Dentro e fora da revista, Hobsbawm não apenas cultivava relações com acadêmicos da França, da Alemanha, da Itália, da América Latina, da Índia e de países do Leste Europeu, como também viajava constantemente a esses lugares, fosse para estreitar laços, fosse para fazer pesquisa.

Tudo isso, de certa maneira, relaciona-se com a adesão ao comunismo. Mas esse traço definidor da vida do personagem implicou, como documenta Evans, embargos diversos à sua trajetória. Boa parte daquilo que se conhece da vida de Hobsbawm entre os anos 40 e 60 deve-se ao acompanhamento pelo serviço secreto britânico de seus passos no Exército (no qual Hobsbawm serviu durante a Segunda Guerra Mundial) e na militância no Partido Comunista. A marcação como comunista em espaços sociais diversos custou a Hobsbawm, entre outras coisas, óbices a mudanças de posto militar, suspensão de trabalhos na bbc, negativa de visto para os Estados Unidos, recusa de livro por editores, além de uma dose extra de acrimônia por parte de jornalistas e de resenhistas acadêmicos de seus livros.

Evans referenda a interpretação do próprio Hobsbawm de que postos de trabalho lhe foram negados em decorrência do ambiente de Guerra Fria. O historiador jamais obteve um posto em uma universidade britânica de relevo. Foi, até a aposentadoria, professor do Birkbeck College, uma instituição que ofertava cursos noturnos para pessoas que trabalhavam durante o dia.

Triunfo

Isso não impediu, contudo, que Hobsbawm se consolidasse como não apenas um historiador de prestígio na comunidade intelectual inglesa, mas também uma espécie de publicista local. Mesmo sem ter se desligado do Partido Comunista após a invasão da Hungria pelo Exército Vermelho, em 1956, Hobsbawm assumiu posições claramente anti-stalinistas e teve peso em debates sobre os rumos do Partido Trabalhista nos anos 80. A partir daí, foi constantemente ouvido em jornais de dentro e de fora da Inglaterra sobre os rumos da esquerda nos planos nacional e internacional. Apesar da hostilidade de parte da intelligentsia britânica, Hobsbawm foi, ao fim da vida, incorporado ao establishment intelectual da Grã-Bretanha, como evidenciam as disputas acirradas de grandes editoras pelos direitos de suas obras e o fato de ter sido um membro ativo da British Academy, espécie de clube seleto dos grandes nomes das Humanidades nos países britânicos.

Evans tem dificuldade em explicar a centralidade de Hobsbawm na vida intelectual britânica em termos outros que não o do brilho pessoal do historiador. É certo que a erudição de seu personagem e sua capacidade extraordinária de estabelecer conexões entre processos históricos de diferentes partes do mundo cumpriram um papel decisivo na sua elevação ao panteão historiográfico do século 20. Mas, para alargar nossa compreensão da trajetória de Hobsbawm, seria preciso pensar mais sistematicamente nas condições de possibilidade de constituição tanto de seus públicos (por que, afinal, o sucesso editorial tão expressivo no Brasil?) quanto de suas alianças.

Em certos aspectos, Hobsbawm de fato triunfou apesar de seus estigmas de estrangeiro, de comunista e de judeu (aspecto muito pouco explorado no livro). Ocorre que esses estigmas se convertiam em redes de solidariedade entre as pessoas que se viam afetadas pelas mesmas formas de descrédito social. Não é à toa que a casa de Marlene e Eric Hobsbawm tenha se tornado um ponto de afluência de amigos judeus, comunistas e estrangeiros.

Hobsbawm de fato triunfou apesar de seus estigmas de estrangeiro, de comunista e de judeu

É verdade que Evans não se propõe a alçar grandes voos interpretativos. Sua pesquisa massiva foi feita sem poder se apoiar em outros trabalhos biográficos sobre seu personagem. Compreende-se, portanto, que o livro consista sobretudo em um trabalho hercúleo de ordenamento de fontes biográficas em uma narrativa convencional muito bem-feita. O leitor encontrará aqui ainda uma profusão de referências ao Brasil, país que Hobsbawm visitou inúmeras vezes, incluindo uma famosa palestra na Unicamp nos anos 70 — exageradamente tomada por Evans como episódio relevante da abertura democrática brasileira — e a passagem por Paraty, como estrela da Flip, em 2003. Incidentalmente, o historiador se tornou personagem dos nossos debates políticos: sua morte suscitou uma escaramuça entre a revista Veja, que acusou Hobsbawm de ser um “idiota moral”, e a Associação Nacional de História, que defendeu o legado de alguém capaz de “dar voz” a mulheres e homens que apenas faziam figuração na história oficial. Não é de estranhar que esse livro tenha Fernando Henrique Cardoso incluído nos agradecimentos iniciais e Luís Inácio Lula da Silva como prefaciador da edição brasileira.

A propósito, um livro com tamanha qualidade merecia uma edição mais cuidadosa. O desconhecimento das instituições do mundo intelectual britânico enseja confusões em série. Uma public school, apesar do que sugere o nome, é um estabelecimento de ensino privado frequentado pelos filhos da elite britânica. No original, Evans tenta alertar seus leitores não ingleses sobre a provável confusão, lembrando tratar-se de fee-paying schools. Mas a edição brasileira não se convence, e chama as public schools de “internatos de curso médio gratuitos”.

Outro caso é o da tradução infeliz de college por “faculdade”. Os colleges não têm paralelo nem na nomenclatura, nem na prática do sistema de ensino brasileiro. Eles estão ligados às universidades, mas, no caso de Cambridge e Oxford, têm autonomia em relação a elas, pois se baseiam em recursos, estatutos e símbolos próprios. No college, alguém da geração de Hobsbawm estabelecia os laços sociais básicos em Cambridge. Mas o King’s College, ao qual Hobsbawm foi vinculado, não era “faculdade”, como quer a presente edição. Menos deletéria para a compreensão do cenário inglês, mas igualmente confusa, é a designação da conhecida London School of Economics como “Faculdade de Economia de Londres”. Até o tradicional acrônimo lse é substituído pelo aportuguesado “fel”. De fato, a tradução do nome deixa um amargor.

O que dizer de Hobsbawm especialista no mundo “moderno”? Na convenção historiográfica brasileira, seu período é o contemporâneo, e não o moderno, embora Hobsbawm tenha ocasionalmente escrito sobre o século 17. Às vezes, parece que as notas foram traduzidas por alguém que não leu o livro. Em uma delas, Evans muda de gênero (deve ser permuta com a historiadora Maxine Berg, identificada nessa edição como historiador). Em outra, o médico Allan May, responsável por vazar informações de tecnologia nuclear para os russos durante a Segunda Guerra, tem seu sobrenome traduzido para “Maio”, entre outros equívocos.

É uma pena que as editoras brasileiras, em regra, tenham abandonado o expediente da revisão técnica. Em mais de setecentas páginas, é impossível não cometer erros, mas é preciso que se deem condições aos encarregados pelo manuscrito de minimizá-los. Com quase 160 reais de preço de capa, era de esperar algo melhor.

Quem escreveu esse texto

Miguel Palmeira

Historiador, escreveu Moses Finley e a economia antiga (Editora Intermeios).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.