Pedagogia da coragem

É a vocês, liberais brancos, e à nação branca americana que me dirijo: conhecemos seus planos. Vocês perceberam a inteligência dos negros americanos, desde que souberam que eles superam vocês no pensamento revolucionário, vocês decidiram e eu repito a palavra ‘decidiram’, aniquilá-los […] e o povo negro, vocês esperam, ficará amedrontado o bastante, para ter gestos cada vez mais oblíquos, servi-los e se calarem […]. Seus policiais, sua administração, seus magistrados, treinam diariamente, e seus especialistas também para massacrar negros. Primeiro os negros todos. Depois os índios sobreviventes, depois os chicanos, depois os radicais brancos, depois, espero, os liberais brancos, depois a administração branca, e depois vocês mesmos! 
(Jean Genet no curta-metragem Genet fala sobre Angela Davis)

As memórias de Frederick Douglass e Assata Shakur se entrelaçam compondo uma espécie de história oral em dois tempos do antirracismo nos Estados Unidos que pode iluminar de alguma forma o momento presente do Brasil. Assata continua sendo perseguida pelo governo americano que incluiu seu nome entre os maiores terroristas do mundo, algo totalmente injusto, que vai contra a própria definição de terrorismo determinada pela ONU. Assata jamais feriu ou teve a intenção de ferir nenhum cidadão ou civil americano, apenas participou de um ato que foi rechaçado com extrema violência pela polícia, em que um policial foi morto e não há provas determinantes de sua participação nisso. Ainda assim, ela foi condenada e presa mais por questões políticas do que criminais, fugiu da prisão e hoje vive em Cuba.

      
Autobiografias de Frederick Douglass e Assata Shakur

O episódio, no entanto, não ocupa caráter central em seu livro, algo positivo pois prova que ela não é siderada pelo principal sintoma do racismo, que é marcar de forma traumática uma narrativa de vida — o que não signifique que ela não ignore o horror dos detalhes sobre sua prisão e torturas. Assata fala da dor de sofrer injustiças diversas e a impressão que fica é que essas vivências a fortaleceram — talvez a consciência da força que nasce da dor seja uma prova para todos, todas e todes da possível conversão do medo em coragem, algo que pode ter vindo de tantas experiências anteriores de seus ancestrais.

Fazem falta as memórias de Luiz Gama, Sueli Carneiro, Maria Firmina dos Reis e Abdias do Nascimento

É o caso de Frederick Douglass, anterioridade é interioridade. Douglass e depois Assata escolheram moldar suas interioridades com as memórias das lutas e não apenas a da dor. Sugiro a leitura cruzada dos dois livros para que, além do historicismo, os dois testemunhos formem uma amálgama de saberes para nossa subjetividade. Ambos compõem o que podemos chamar de epistemologia negra e são experiências com profundo grau de imanência. Podemos tecer com Douglass uma espécie de vaso comunicante com Luiz Gama e, com Assata Shakur, uma linha nada tênue ligando-a a Marielle Franco, a Dandara do Quilombo dos Palmares e a Teresa de Benguela.

Campos convergentes

Essas ressonâncias podem nos levar a uma afluência de lutas que se expandem para visões nítidas de nossa realidade, que em suas diferenças com as realidades da América do Norte criam campos convergentes e dialógicos entre as lutas antirracistas. Por que não existe no Brasil um partido negro? O que os movimentos antirracistas de hoje podem aprender com este diálogo imanente e imaginário entre Frederick Douglass e Luiz Gama? Douglass atuou na criação de um campo de ações que culminou na enorme pressão que praticamente forçou Abraham Lincoln a atuar de modo objetivo no fim da escravatura. Douglass é a raramente nominada força visível-invisível e essencial por trás da assinatura da 13^a emenda da Constituição dos Estados Unidos. Estamos vivendo no Brasil uma espécie de fantasmagórica e alegórica versão em escala menor da guerra de secessão americana, desterritorializada, mas efetivamente demarcada por classes abastadas que replicam em seus modos culturais os pactos de branquitude, identificando-se em seus inconscientes coloniais com o supremacismo branco. Guardadas as diferenças entre os dois países, há um eficiente movimento de espelhismo, e o modo como os americanos se articulam contra os racismos em seu país podem nos ajudar a compor um útil espelho que reflita a luz do ativismo de Douglass, de Assata e do Partido dos Panteras Negras por aqui.

Por que até hoje não tivemos um movimento de guerrilha cultural antirracista nos moldes dos Panteras Negras? Por que não temos um Movimento Onça Preta, por exemplo? Por que nossos líderes e ativistas são sutilmente ou não diluídos pela conciliatória e fisiológica máquina partidária, tanto de esquerda quanto de direita, que colocam as lutas antirracistas sempre em segundo plano? Isso já foi denunciado por Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, figuras do pensamento antirracista decolonial do Brasil que ainda não foram levadas a sério pelas forças políticas em vigência — e só o serão quando houver um poderoso campo convergente de ações que seja orgânico e hiperinclusivo, incluindo, por exemplo, os evangélicos antirracistas.

Estas são algumas das lições possíveis tiradas das bionarrativas de Douglass e Shakur. E fazem enorme falta as memórias de Luiz Gama, Sueli Carneiro, Maria Firmina dos Reis, Abdias do Nascimento e outras, outros e outres ícones da resistência antirracista. O cruzamento destas bionarrativas negras forma uma pedagogia da coragem, algo de que necessitamos para atravessar e transfigurar o presente de modo que modifique o passado e o futuro de nosso país. Uma grande pergunta se apresenta após a leitura cruzada dos livros: será o racismo algo que se apresenta como pensou o filósofo Emmanuel Levinas, uma anacrônica configuração do conceito de humano e humanidade? Nesse caso, seria necessária uma reconfiguração e expansão desse conceito para fora e longe dele mesmo, até a alteridade total, o que exigirá uma coragem que podemos colher nas vozes de Frederick Douglass e Assata Shakur.