História,

Os intelectuais e a democracia

Discípulo de Lukács disseca a primeira grande revolta contra a autocracia stalinista, que inspirou a Primavera de Praga de 1968

31maio2019 | Edição #23 jun.2019

Em 1957, André Gorz escreveu um livro que viria a ser publicado dois anos depois, La Morale de l’histoire. Não foi por acaso, adverte, que naquele momento ele se dedicasse a uma reflexão em profundidade sobre o estado do mundo. É que o mundo acaba de mudar, escreve ele. E um conjunto de eventos que se condensou no ano de 1956 marcava essa mudança.

Dentre eles, dois se revelaram decisivos, e ocorreram quase simultaneamente. Um, a Guerra do Sinai, na qual Israel, França e Grã-Bretanha atacaram o Egito em resposta à nacionalização do canal de Suez pelo chefe de governo egípcio, Gamal Abdel Nasser, operação militar da qual Israel saiu vitorioso e que se revelou muito mais do que um confronto armado local. Enquanto os comandados de Moshe Dayan obtiveram territórios importantes para a segurança nacional israelense, seus parceiros europeus pagaram caro pela aventura, com a perda da sua condição de potências mundiais e o desconforto de verem fortalecida a posição do Terceiro Mundo, do qual Nasser era um dos líderes. Isso representava a expressão internacional desse reajuste do quadro político global. 

Sua contrapartida menos espetacular, porém altamente significativa, ocorreu na Hungria nesse mesmo ano memorável: uma revolta contra a opressão stalinista interna e seu apoio básico, a subordinação plena do país à União Soviética no plano externo. 

A revolta húngara foi a mais contundente rebelião contra o poder soviético nas nações-satélite até aquele momento, embora não tenha sido a primeira. Já em 1953, um inusitado movimento grevista sacudiu a Alemanha Oriental (rda) e foi rapidamente controlado, sem atingir a repercussão do levante húngaro. Algo que diferenciava o caso da rda do da Hungria foi que o primeiro se concentrou na resistência do operariado a condições trabalhistas e políticas inaceitáveis sem o apoio de um grupo de intelectuais que assegurasse a expansão do movimento até o campo cultural, enquanto na Hungria a representação da dissidência coube a setores cada vez mais organizados da intelectualidade. 

Isso com uma forte presença dos escritores, que assim honravam um legado histórico que vinha pelo menos da participação húngara no grande movimento emancipador europeu de 1848, com destaque para o poeta Sandor Petöfi, que se tornaria símbolo da liberdade em sua pátria. Ao lado disso, os húngaros levavam vantagem sobre seus camaradas alemães por terem uma liderança política atuante desde 1953 (ano da morte de Stálin, convém lembrar) na figura de Imre Nagy. 

Apesar de ter sido rapidamente sufocado pelos tanques soviéticos (enviados para ajudar o governo stalinista húngaro) e da posterior execução de Nagy, o movimento converteu-se em um símbolo, que seria acionado doze anos depois na Tchecoslováquia e que ainda estava vivo nos eventos que marcaram o desmonte do sistema soviético em 1989. 

O livro de István Mészáros que a Boitempo acaba de lançar traça um minucioso retrato da participação dos intelectuais no movimento húngaro. É livro escrito à quente, imediatamente após os eventos, por participante direto no processo, inteiramente autorizado para tanto. Isso porque associava sua visão de dentro dos eventos à sua condição de crítico de primeira hora das ações combinadas do governo stalinista e da União Soviética antes e depois da revolta. E o fazia sem jamais abandonar sua posição de comunista inconformado com a deterioração daquilo que prometia, na União Soviética, ser uma revolução de alcance mundial. 

Mészáros dá destaque a Lukács, com quem estudou, sem deixar de assinalar as vacilações e os dilemas dessa figura de relevo no pensamento europeu

Passo a passo são examinadas as posições dos participantes dos dois lados e se procura dar destaque a gente do porte de um György Lukács — com quem Mészáros estudou, sem por isso deixar de assinalar as vacilações e os dilemas internos daquele personagem de relevo no pensamento europeu na primeira metade do século 20 e militante desde a abortada Revolução Húngara de 1919 até as jornadas de 1956. Além de dedicar atenção a numerosas figuras menores, Mészáros se detém em Jószef Révai, cacique da política cultural húngara de 1948 (quando foram dissolvidos os demais partidos e o monopartidarismo concentrado e autoritário tomou conta) até 1953. 

Brilhante jovem intelectual nos anos 1920, quando teve papel de destaque na ofensiva da ortodoxia partidária contra o grande livro de Lukács, História e consciência de classe, em 1923, Révai retornou como carrasco de seu mestre um quarto de século depois, em 1948, em nova investida contra os “passos em falso” de Lukács. Mészáros vê em Révai um caso extremo da conversão de intelectual de alto padrão em cão de guarda de um regime autoritário, com ímpeto obscurantista em nome de uma ortodoxia aceita sem reservas. 

Democratização radical

Mézsáros tem inteira clareza sobre o que falta fazer para superar os impasses em que se havia envolvido a União Soviética sobretudo no quase quarto de século da tirania de Stálin, transmitidos às nações que arrebanhou após a Segunda Guerra Mundial como cinturão de proteção e como reservas a serem exploradas economicamente, tudo isso em nome da “construção do comunismo”. Democratização radical, nada menos do que isso, exige ele. Nesse ponto ele podia mobilizar o que havia aprendido com seu grande mestre (e padrinho de seu casamento, como se vê numa comovente foto no final do volume) sobre a atenção a ser dada àquilo que não é absorvido pelas instituições, das quais havia aprendido a desconfiar: a “vida cotidiana”. Nesses termos, a democracia radical, que brilhou no horizonte em 1956, é de fato radical, ou seja, citando passagem do próprio Lukács em História e consciência de classe, pega as coisas pela raiz.

É fora de dúvida que estamos diante de livro de alto interesse, não só para aqueles que se interessam por um passo importante da história europeia no século 20, como também para quem se pergunta sobre o que mudou desde 1956 e o que deixou traços bem indesejáveis até nas democracias representativas mundo afora. 

Enfim, para além da copiosa informação, encontra-se nele a marca do autor, um intelectual público com grande mérito, capaz de produzir, quando jovem participante de forte evento histórico e imediatamente após o seu desfecho, uma obra cuja importância fica comprovada nessa oportuna reedição. É de se recear que, mais de meio século depois do ano mágico de 1956, além de documento qualificado o livro ainda guarde mais atualidade do que seria desejável — quando o mundo de que ele trata não mais existe, e a Hungria volta a conviver com a direita contra quem Lukács lutou em 1919.

Um aspecto importante do regime que Mézsáros retrata aparece quando ele comenta que pessoas muito valorosas se afastavam com desprezo da política oficial. Esse é um fenômeno caraterístico de regimes autoritários com partido único e uma das razões da degradação do Partido Comunista soviético, cada vez mais presa dos oportunistas de todos os matizes, que formariam a classe dominante após a queda.

Pessoas muito valorosas se afastavam com desprezo da política, um fenômeno típico de regimes de partido único e uma das razões da degradação do PC soviético

O livro, em edição notavelmente bem cuidada, desde o trabalho da dupla de tradução, João Pedro Alves Bueno e Claudinei Cássio de Rezende, traz interessante iconografia, além de notas editoriais explicativas e um índice onomástico com dados biográficos. Rezende também assina a muito boa apresentação do livro junto com Antonio Rago Filho, estudioso do tema, e a ótima orelha de capa é de Maria Orlanda Pinassi. 

Um pormenor merece lembrança. É que os editores mantiveram sem mais o título da edição italiana, publicada durante o exílio de Mészáros, em 1958, sem atentar para a diferença da situação naquele momento — em que todos sabiam do que estava se falando — e o quase total desconhecimento disso nos dias de hoje (mais um mérito da edição brasileira). Alguma coisa como “Hungria, 1956” poderia ter ajudado. Curiosa também é a ilustração da capa: um vigoroso trabalhador no melhor estilo da época, e não um franzino intelectual.    

Quem escreveu esse texto

Gabriel Cohn

Sociólogo, é autor de Weber, Frankfurt: teoria e pensamento social (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #23 jun.2019 em maio de 2019.