História,

Os enigmas de Luiz Gama

Com a publicação de ‘Obras completas’ e o lançamento de filme sobre sua vida, o advogado negro abolicionista vai ganhando a visibilidade que merece

18nov2021 | Edição #52

A temática racial ganhou lugar de destaque no debate público no último ano, infelizmente muito por causa dos recentes casos explícitos de violência racial e da resposta que os movimentos sociais e movimentos negros deram a eles. Um dos resultados disso foi o aumento exponencial do interesse na leitura de autores negros associado à resposta tempestiva do mercado editorial nessa direção. Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Frederick Douglass e W. E. B. Du Bois são alguns dos autores que receberam atenção devida das editoras brasileiras no último ano com reedições de obras e biografias. É nesse cenário fértil que a editora Hedra está publicando a coleção Obras completas de Luiz Gama.

Advogado, abolicionista e poeta, Luiz Gama foi uma das figuras mais preeminentes do Brasil oitocentista, mas isso não impediu que sua obra sofresse um escandaloso apagamento histórico. Entre artigos de imprensa e manuscritos, a coleção Obras completas junta mais de setecentos textos de sua autoria. Destes, seiscentos estiveram desconhecidos do público por quase dois séculos. São textos que expõem um escritor profícuo, de habilidade narrativa singular e de posições políticas pouco populares para o seu tempo.

Sob os pseudônimos “Spartacus” e “John Brown”, por exemplo, defendeu uma agenda política de abolicionismo radical. Como “Afro” escreveu sobre um projeto de Brasil que passava pela educação pública, democracia plena e liberdade de expressão. Trovas burlescas, seu primeiro livro de poesia, publicado em 1859, traz como autor “Getulino”, nome que faz referência a Getúlia, território no norte da África. 

Em 1880, dois anos antes de sua morte, escreveu uma carta pessoal e enigmática que entraria para a história como a peça fundamental para a compreensão do próprio autor. Na conhecida “Carta a Lúcio de Mendonça”, Gama discorre sobre sua trajetória de vida, de menino vendido como escravo pelo próprio pai a respeitado homem das letras que libertou mais de quinhentos escravizados ao longo da vida. A carta endereçada ao amigo se tornou um perfil biográfico escrito por Lúcio de Mendonça, que foi publicado em um almanaque paulistano e em formato de folhetim no jornal carioca Gazeta da Tarde. O que ninguém sabia é que essa troca de cartas entre amigos escondia pistas que revelavam centenas de textos inéditos de Luiz Gama publicados na imprensa paulistana.

A coleção junta mais de setecentos textos de Gama; destes, seiscentos estiveram desconhecidos do público por quase dois séculos 

A descoberta é do pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em história do direito pelo Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha. “Essa carta é cifrada, enigmática, potente, e cada parágrafo dela apresenta um Luiz Gama que a gente ainda não conhece bem. Vai levar pelo menos, uma, duas ou três gerações para entendermos melhor Luiz Gama”, diz Lima, que pesquisou por nove anos esses textos inéditos e é o organizador da coleção editada pela Hedra.

Seguindo pistas como as contidas na “Carta a Lúcio de Mendonça”, Lima cruzou informações e fez uma busca atenta em arquivos particulares, da imprensa e do Judiciário paulista, fluminense, gaúcho, paranaense, mineiro e baiano. Nesse percurso, encontrou a “Carta ao Foro de Belém de Jundiaí”, em um arquivo municipal, documento que se tornou um ponto de partida importante para encontrar outras fontes semelhantes. Diante da descoberta, algumas perguntas se levantaram para o pesquisador: “O que é que Luiz Gama está fazendo em Belém de Jundiaí? Será que ele estava só nessa cidade, ele não poderia estar em outras próximas? Quem está numa cidade, provavelmente estará em outra vizinha”. E foi seguindo essas hipóteses que Lima fez sua odisseia pessoal pelos arquivos públicos dos municípios no interior de São Paulo na busca por textos inéditos de Luiz Gama.

Para facilitar o acesso aos mais de setecentos textos de Luiz Gama, a coleção foi organizada em volumes que combinam recortes temáticos e cronológicos. Os volumes Democracia (1866-1869) e Liberdade (1880-1882), os dois primeiros de onze que ainda serão publicados, contam com um significativo suporte crítico composto de notas de rodapé que contextualizam as centenas de referências mitológicas, literárias e jurídicas de que Luiz Gama lança mão em seus escritos. Além disso, antes de cada seção temática encontramos comentários do organizador que ajudam na compreensão do contexto histórico em que o escrito foi concebido.

Na introdução de cada volume, Lima conta um pouco sobre como encontrou e decifrou enigmas deixados por Luiz Gama em seus textos assinados. Fazendo uso de uma escrita leve e fluida, o pesquisador conduz uma narrativa bem construída que me deixou na ponta da cadeira para descobrir como ele conseguiu identificar a identidade de Gama em textos não assinados ou sob pseudônimos improváveis. Certamente o objetivo principal não era causar essa sensação em mim, mas o texto apresenta ao leitor os “métodos” e os porquês que conduzem sua pesquisa histórica com uma escrita clara, sem as costumeiras embromações acadêmicas que encontramos em obras dessa natureza. Luiz Gama precisa ser conhecido e, sobretudo, lido. Portanto é importante que tenhamos obras que prezem o rigor e a profundidade científica, mas que sejam capazes de oferecer um texto acessível a qualquer leitor. Como enfatiza o pesquisador, “esse projeto é movido pelo desejo de colocar o Luiz Gama nas ruas e na cesta básica literária nacional”.

Filme

Esse movimento de fazer Luiz Gama um personagem conhecido passa pela literatura, por instituições acadêmicas e agora também chega aos cinemas. O longa Doutor Gama, dirigido por Jeferson De, estreou nos cinemas em agosto de 2021 e está disponível na plataforma Globoplay. Na contramão de outros filmes do gênero, Jeferson De apostou em uma narrativa que fala da escravidão, mas sem violência explícita, dando foco às ações de liberdade e ao pensamento do advogado negro. Sobre as escolhas do filme, o diretor afirma: “É uma história de dor, mas a gente sabia que tinha que ir para um outro lugar. Eu queria que as crianças também conhecessem essa história, queria ser generoso com os jovens negros e negras de dez anos e que em algum momento nosso filme pudesse ser exibido nas salas de aula”.

O cineasta, que também é diretor dos premiados M-8: quando a morte socorre a vida e Bróder, acredita que o cinema cumpre um papel importante na tarefa de dar visibilidade à história de Luiz Gama. “Queremos colocar o Luiz Gama no lugar de destaque e o filme ajuda nisso, mas não é a peça principal. A peça principal são o Luiz Gama e sua obra escrita. A gente vive em um país onde as pessoas não têm acesso aos livros e eu sei qual é o papel do filme nesse contexto”, destacou o cineasta.

É perceptível o esforço coletivo daqueles que conhecem e estimam a obra de Luiz Gama de fazê-la conhecida. O Brasil da próxima década tem um desafio pela frente: reconstruir uma nação a partir desse cenário de terra arrasada em que vivemos. Como Bruno Rodrigues de Lima escreveu na quarta capa do volume Democracia (1866-1869), “o futuro da democracia no Brasil passa, obrigatoriamente, pelas ideias de Luiz Gama”.

Quem escreveu esse texto

Thiago André

É fundador, roteirista e produtor de conteúdo do podcast História Preta.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.