História,

Encontros com a alteridade

Em leitura inovadora de relatos de viagem sobre o Brasil, pesquisadora revela a complexidade dos contatos iniciais com o Novo Mundo

01mar2021

O historiador Stephen Greenblatt associa os relatos dos primeiros viajantes europeus a visitar o chamado Novo Mundo à prática de contar histórias. Para Greenblatt, ainda que nesses relatos se possam perceber as linhas gerais de uma visão ordenadora mais ampla, eles parecem desorganizados, fragmentários, sem rumo. Sua força estaria no choque produzido diante do que não é familiar, acompanhado de uma intensa curiosidade. Neles, uma série de experiências ocorrem ao acaso e resistem a ser integradas em uma narrativa maior.

Para Greenblatt, a principal reação dos europeus no contato inicial com o Novo Mundo era o maravilhamento. Trata-se de uma resposta intensa e emocional, mas também ambígua. Anterior ao julgamento moral, o maravilhamento pode se relacionar ao mesmo tempo à repulsa e à atração, ao horror e ao prazer, produzindo uma suspensão do entendimento. O maravilhoso se manifesta na descrição cheia de assombro de costumes indígenas ou, de forma mais radical, nos rumores de criaturas fantásticas — Cristóvão Colombo chegou a afirmar, no diário de suas navegações, que avistara sereias na costa do Haiti.

A irrupção do maravilhoso ou do fantástico nos relatos dos primeiros contatos de europeus com a América deixa antever um terreno incerto e cambiável, em que tudo ainda está à espera de definição. Se um olhar retrospectivo montou narrativas mais ou menos coesas a respeito do processo de colonização do Novo Mundo, como a de um projeto de dominação, ou de uma diferença radical entre civilização e selvageria, um retorno aos relatos de viagem escritos no século 16 permite enxergar a complexidade dos primeiros encontros entre europeus e indígenas americanos.

Em Encontros escritos, Luciana Villas Bôas faz esse retorno através de uma leitura minuciosa de textos produzidos por europeus que visitaram o Brasil durante as primeiras décadas da colonização, com destaque para a História verdadeira…, de Hans Staden; a coletânea Purchas His Pilgrimes, organizada por Richard Purchas; os textos escritos pelos missionários jesuítas; e o ensaio “Des Cannibales”, de Michel de Montaigne, este não um relato de viagem, mas mesmo assim um dos principais textos publicados no século 16 a respeito do Novo Mundo. 

Ao contrário do que se costuma pensar, a distinção entre civilizado e ‘selvagem’ nunca foi estável 

O livro desafia a ideia de que o Brasil e o Novo Mundo teriam sido uma “construção” europeia, uma projeção de tradições discursivas que remontam à Antiguidade, ou simplesmente um objeto da exploração colonialista, que os relatos de viagem teriam a função de justificar. A essa visão unificadora da produção simbólica da Europa a respeito do Novo Mundo, Villas Bôas contrapõe a necessidade de dar atenção ao caráter problemático dos textos e de repensar sua historicidade, as condições de sua produção e circulação, desmontando distinções estáticas “entre europeus e não europeus, escrita e oralidade, próprio e alheio, que, no contexto em que surgiram os relatos, muitas vezes não tinham sido sequer formuladas”.

“Bom francês”

O que sobressai em Encontros escritos é o cuidado com que esses textos são esmiuçados, levando em conta não só seus pormenores estilísticos, mas também sua materialidade e as circunstâncias de sua circulação, que revelam, por exemplo, ligações curiosas entre pirataria em alto-mar e pirataria literária. Associações inesperadas desse tipo surgem com frequência. Não à toa, o último ensaio do livro põe em questão a figura do “bom francês”, expressão que faz uma inversão jocosa do “bom selvagem” para discutir as complexas relações de amizade e inimizade entre portugueses, franceses e indígenas brasileiros, ao mesmo tempo que insinua que a distinção entre civilizado e “selvagem” nunca foi estável, ao contrário do que se costuma pensar.

Por sua vez, os ensaios dedicados ao relato de Hans Staden investigam as estratégias de validação não só do texto, mas também do próprio autor, pego numa posição ambígua entre participante mais ou menos relutante nos ritos dos tupinambás e observador de costumes estranhos. Para Villas Bôas, o caráter de registro etnográfico da segunda parte da História verdadeira… rompe com os supostos propósitos morais e religiosos da obra, apresentados em seu preâmbulo como um exemplo de salvação dirigido à comunidade protestante da Héssia, região da Alemanha onde o livro foi publicado e onde Staden havia nascido. O retorno ao lar, porém, implica também a necessidade de reafirmar a identidade do autor como originário da Héssia, e Staden se vê mais uma vez na posição ambígua de ser, ao mesmo tempo, um insider e um outsider.

Na leitura de Villas Bôas, a maneira como Staden descreve o canibalismo ritual dos tupinambás revela fortes ligações com o Carnaval europeu e com o espetáculo das dissecações científicas, o que ajuda a embaralhar mais uma vez a distinção entre civilização e selvageria — indistinção que se manifesta também na imbricação entre oralidade e escrita presente nos textos produzidos no contexto das primeiras missões jesuítas no Brasil. Longe de ser um elemento já dado, a identidade do europeu se apresenta, assim, em fluxo.

Em “Des Cannibales”, a figura do “selvagem” serve como um meio fundamental para Montaigne interrogar sua própria identidade.
Em Encontros escritos, o Novo Mundo surge como um terreno de entrecruzamento de diferentes “eus”, de construção contínua de alteridades e identidades sempre instáveis, de representações sempre provisórias. A palavra “encontro”, empregada no título, remete a diferentes sentidos que se depreendem ao longo de todos os ensaios do livro. Ela diz respeito ao encontro entre estrangeiro e nativo, assim como entre presente e passado. O encontro, aqui, também é releitura, não só dos relatos em si, mas também da maneira como foram interpretados ao longo do tempo, numa reelaboração constante dos sentidos que atribuímos ao continente em que vivemos.

Quem escreveu esse texto

André Cabral

Historiador, co-organizou Subjetividades e sensibilidades na escrita da história (Paco Editorial).