História, Páginas da Independência,

As sete mulheres

Livro combate o silenciamento histórico de figuras femininas que tiveram protagonismo na luta pela Independência

26ago2022

O centenário da Independência, em 1922, provocou celebrações patrióticas e reflexões sobre a formação do país. Em 1972, o governo militar inventou o sesquicentenário da Independência, chegando até a trazer os restos mortais de d. Pedro 1o, só para exaltar a si próprio. Resultado de nossos tempos difíceis e aguerridos, o bicentenário da Independência também vem sendo objeto de disputas interpretativas, arroubos nacionalistas e discussões sobre o processo de formação do Brasil — estas, mais do que bem-vindas. Elas expressam o interesse da sociedade em problematizar o passado e conhecer melhor questões que vêm inspirando historiadores há décadas. É possível falar em Brasil como uma unidade política na década de 1820?

Como se deu a construção da cidadania brasileira nestes duzentos anos? Qual foi a participação da maioria da sociedade brasileira — escravizados, indígenas, mulheres — nesse processo? A Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá, organizado pela historiadora Heloísa Starling e pela escritora Antonia Pellegrino, é um ótimo exemplo de publicação que visa reverter um pouco desse apagamento histórico.

O livro é composto de sete capítulos, todos escritos por mulheres, cada um sobre uma figura feminina que “esteve lá”. “Lá”, explicam as organizadoras, é a “cena pública” do processo de Independência do Brasil, por elas definido como tendo tido início com a Conjuração Mineira em 1789 e se estendido até meados da década de 1820, quando foi formada, no Nordeste, a Confederação do Equador. Foi nesse período que viveram e atuaram Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, Bárbara de Alencar, Urânia Vanério, Maria Felipa de Oliveira, Maria Quitéria, Maria Leopoldina da Áustria e Ana Maria José Lins, analisadas, respectivamente, por Heloisa Starling, Antonia Pellegrino, Patrícia Valim, Cidinha da Silva, Marcela Telles, Virgínia Siqueira Starling e Socorro Acioli. O livro é encerrado com o entusiasmado posfácio “Mulheres em necessária travessia”, assinado pela ministra do stf Cármen Lúcia Antunes Rocha.

As sete mulheres participaram da vida pública brasileira em diversas regiões do território que, ao longo da primeira metade do século 19, viria a ser definido como o “Império do Brasil”. Em Minas, Hipólita Teixeira de Melo participou da eclosão do movimento rebelde que gerou a Conjuração Mineira. Na Bahia, a marisqueira e pescadora Maria Felipa de Oliveira liderou um grupo de resistência contra os ataques portugueses a Itaparica; Maria Quitéria se vestiu com roupas masculinas para pegar em armas no Recôncavo; e Urânia Vanério denunciou a tirania da Coroa portuguesa em um panfleto político.

O livro retoma a velha lição de que a compreensão do passado é essencial para as lutas do presente

No Crato, Bárbara de Alencar tornou-se a primeira presa política do futuro país, punida pelo envolvimento com a Revolução de 1817 — a mesma que, em Alagoas, motivou a senhora de engenho Ana Maria José Lins a se envolver nas disputas políticas da região. Por fim, no Rio de Janeiro, Leopoldina demonstrou não ter saído da Europa a passeio, recusando-se a se curvar sem protesto aos caprichos da família real portuguesa.

Não é fácil, e nem é esta a intenção das autoras, definir os significados de ativismo político nos tempos da Independência. O certo é que as mulheres que participaram desse processo o fizeram de maneiras diversas. As trajetórias escolhidas são um ótimo exemplo do quanto foi um período de intensa expansão das possibilidades de intervenção na cena pública, também explorado por homens escravizados e libertos, de origem africana ou indígena, que aproveitaram as demandas pelo fim do jugo português, como se falava à época, para alargar a definição do conceito de liberdade e defender a deles mesmos.

Desafio

Talvez o maior desafio — e certamente um grande mérito — do livro seja o de convencer os leitores de que as mulheres realmente estiveram “lá”. O foco em sete trajetórias (outras são ocasionalmente mencionadas) pode dar a falsa impressão de que, afinal, foram poucas as que de fato participaram do processo. Mas, se a hipótese do livro estiver correta e se tantas outras mulheres também participaram das lutas pela Independência, por que sabemos tão pouco sobre elas?

As organizadoras acertam ao ressaltar o silenciamento historiográfico sobre a vida dessas mulheres e a dificuldade em encontrar informações sobre elas nos arquivos. Tanto que, nesses casos, foi preciso usar “a imaginação do possível”, feliz expressão da historiadora Natalie Davis para defender que, na falta de fontes, o jeito é usar da criatividade para avançar na análise. Ao silêncio da documentação, no entanto, se opõe o trabalho de quem sabe procurar e ouvir as vozes encontradas nos arquivos. Muitas investigações a respeito vêm sendo feitas por novas gerações de historiadoras, nem todas devidamente creditadas no livro. Se algumas das autoras são, elas próprias, as pesquisadoras do assunto, outras se referem de maneira vaga à maneira como obtiveram as informações que lhes permitiram escrever sobre o tema. Referências mais explícitas ao processo de produção do conhecimento histórico ajudariam os leitores a entender que, sem pesquisa, não há boa escrita da História.

Esse aspecto não tira, porém, o principal mérito do livro: o de retomar a velha lição de que a compreensão do passado é essencial para as lutas do presente. É fundamental conhecer as trajetórias dessas mulheres e entender por que as narrativas oficiais se dedicaram tão pouco a elas, para romper com a omissão sobre sua participação nesse e em outros momentos da vida pública brasileira. A mensagem que as autoras deixam é clara: se houve e ainda há silenciamento, agora é o tempo de enfrentar as estruturas escravistas e patriarcais que ainda existem em nossa sociedade e ocupar de vez a cena pública deste país. É hora de fazer barulho.

Quem escreveu esse texto

Keila Grinberg

É historiadora e professora da Universidade de Pittsburgh.