História,

Arqueologia bélica

Na ficção e na realidade, apesar do custo humano, a guerra permanece uma das poucas constantes da humanidade

01out2022 | Edição #62

A apreciação da guerra é filha da distância — temporal, geográfica ou ambas. “Apreciação” no sentido amplo de avaliação, juízo, operação do pensamento que leva a uma análise do passado motivada por questões do presente. “Toda história é história contemporânea”, escreveu Benedetto Croce no início do século 20. Quando Rachel Bespaloff escreveu Da Ilíada, em 1939, parece ter aproveitado a longa distância dos gregos para ler o poema homérico com olhos renovados. “A guerra — nós a fazemos e a suportamos, nós a execramos ou a cantamos; não mais do que o destino, nós a julgamos”, escreve.

Bespaloff oscilava entre uma motivação doméstica e uma coletiva: em 1938, relê a Ilíada para ajudar a filha na escola; em junho de 1940, a França capitula diante de Hitler e a guerra volta à ordem do dia. O resultado requer uma leitura atenta e uma convivência vagarosa para que faça sentido, dada a habilidade de Bespaloff em mesclar registros religiosos, literários e filosóficos. Nascida em 1895, cresce em Genebra, onde recebe a formação em piano e composição; em 1919 vai para Paris como professora de música, lá se casa e começa a estudar filosofia, especialmente Kierkegaard e Heidegger. Por causa das leis raciais, deixa a França em direção aos Estados Unidos em 1941, onde se estabelece como professora de literatura francesa, sem se adaptar, contudo, ao ambiente do exílio. Termina seu ensaio sobre Homero e acompanha a tradução para o inglês, feita por Mary McCarthy, antes de se suicidar, em 1949. Em um dos trechos mais belos de seu ensaio, escreve: “Antes de ser uma conquista, o sentido do verdadeiro é um dom”.

Mesmo com as agruras da vida, esse dom é reconhecido na literatura: “Há outros textos sagrados além da Bíblia e da Ilíada, mas nenhum em que a vocação da justeza seja mais evidente. Alhures, estamos em território estrangeiro, aqui temos nossa pátria, aqui purificamos nossas fontes”. A experiência extrema na vida (o exílio, a angústia, o desamparo) solicita da pensadora um corpo a corpo extremo também com o texto. “Por algum crescimento insensível, a Bíblia e a Ilíada são sempre proporcionais à nossa experiência mais rica em contradições”, escreve. “Elas nos oferecem o conforto pelo qual estamos ávidos: o contato do verdadeiro com o mais extremo de nossas lutas, ao nível do concreto. Quanto mais íntima nossa negociação com esses dois livros divinamente inspirados, mais viva é a nossa desconfiança do crédito dado às interpretações simbólicas que os carregam de um sentido excessivamente rico.”

Reuth projeta no passado um conhecimento ainda não disponível e especula acerca do que poderia ter sido feito

O livro de Bespaloff é rico em reflexões criativas, com destaque para o paralelo entre Homero e Tolstói, “de Troia a Moscou”, costurando a brutalidade e a honra, a grandiosidade dos feitos e dos sentimentos e a indiferença da morte que chega a todos. Enfatiza também os contatos e as relações — Tétis e Aquiles, Príamo e Aquiles —, lendo na filigrana do poema um pouco de sua dimensão teatral. Bespaloff não ignora a interminável fortuna crítica ao redor de Homero, que se espalha ao longo de séculos, e, por isso mesmo, investe em uma escrita pessoal, com uma abordagem ensaística, audaciosa.

Abundância

Breve história da Segunda Guerra Mundial parte de uma premissa semelhante, abrindo com a frase: “Nenhum acontecimento histórico foi objeto de tantos livros quanto a Segunda Guerra Mundial”. Parte da explicação para tal abundância talvez esteja no modo como cada presente reformula seus passados, que tem suas feições transformadas à medida que se modifica a perspectiva. Ralf Georg Reuth cita uma série de trabalhos e pesquisas, e seu livro se insere em um vasto sistema de comentário sobre o conflito. A fluidez de sua narrativa deve muito ao foco sobre os personagens envolvidos — tanto os principais, como Hitler, Stálin e Churchill, quanto os secundários, como Máiski, Halder e Konoi. No caso do dirigente máximo alemão, Reuth enfatiza como seu registro da realidade era único: “O que ninguém percebia era sua irracionalidade, seu delírio em relação a uma conspiração mundial judaica, que ele trouxera dos tempos da revolução para a chancelaria”.

Reuth também joga com as distâncias e os anacronismos didáticos: projeta no passado um conhecimento ainda não disponível e especula acerca do que poderia ter sido feito. Um alvo fácil é Stálin, que surge na narrativa como o típico sujeito que gosta mais de falar que de escutar. “Embora ele tenha tomado conhecimento do comunicado de Hitler sobre a gigante concentração de tropas alemãs junto à linha demarcatória germano-soviética, não lhe deu muita importância”, escreve. “Os boatos de um ataque iminente, que circulavam por toda a Europa, também foram menosprezados por ele como mera desinformação. E Stálin ainda ignorou a intervenção de Churchill, que pela primeira vez havia se dirigido pessoalmente a ele.”

A “breve” história de Reuth dá um passo para trás: inicialmente acompanha uma contextualização de 1918 a 1933, delineando as relações de Hitler com a República de Weimar. Os cortes históricos ficam cada vez mais finos, com o segundo capítulo cobrindo de 1933 a 1939, e daí em diante o espaço se dá na escala dos meses. A divisão temporal também se coordena por cenários: começa com a obliteração da Polônia e da França; segue com a “luta pela Inglaterra” e o início da guerra contra a União Soviética; encerra com “a luta final pelo Reich”, a morte de Hitler e a capitulação do Japão (que incita a criação da Cortina de Ferro).

Apesar de terem estilos diversos, os livros de Bespaloff e Reuth se assemelham por abrir o tempo passado para o influxo de referências e temporalidades variadas. De um lado, a poesia homérica é atravessada pela literatura russa do século 19 e pela filosofia existencialista do início do século 20; de outro, o ineditismo tecnológico da Segunda Guerra é contrabalançado por uma arcaica pulsão xenófoba: “A campanha russa foi a verdadeira guerra de Hitler”, escreve Reuth. “Fazia lembrar mais as fanáticas guerras santas da Idade Média e do início da Era Moderna, quando os opositores eram mortos apenas devido à religião que professavam”. A guerra reside sobre um paradoxo que enche bibliotecas: apesar do enorme custo humano, permanece uma das poucas constantes da humanidade.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Wilcock, ficçaão e arquivo (Papéis Selvagens) e Estratégias de visualidade na literatura: o Olho Sebald (Editora UFMG).

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.