História,

Cinco séculos de pilhagem

Luiz Felipe de Alencastro mostra como a escravidão e a Inquisição moldaram as estruturas que promovem a desigualdade e a tortura

01nov2019 | Edição #28 nov.2019

“Injustiça social é a coisa mais espalhada que há no mundo”; “Eu queria fazer História para entender o presente”; “A polícia brasileira é baseada no alcaguete, na tortura e na porrada”; “A faixa presidencial é o nó nas utopias”. Essas e outras frases são da lavra de Luiz Felipe de Alencastro, um historiador muito erudito, capaz de descrever com detalhes a “bandidagem negreira”, mas que nunca teve medo de dizer o que pensa, de atuar como intelectual público e de inventar um vocabulário cheio de palavras e expressões no mínimo inesperadas, ainda mais quando pronunciadas por um professor acadêmico. Estado de pilhagem, uso cabotino, pirataria e urbanização da miséria são apenas uns poucos exemplos de uma amostragem muito mais expressiva.

Estudante na recém-criada Universidade de Brasília, bem na época em que se montava uma pesada repressão por parte da ditadura militar, ele partiu para o exílio na França em 1966. Por lá estudou história e ciência política na Universidade de Aix-en-Provence, virou professor em Rouen e, na sequência, deu aulas em Paris. Foi na capital dos franceses que Luiz Felipe — ou só Felipe, como seus amigos o chamam — realizou seu doutorado, que o levou a estudar o tráfico negreiro e a adotar uma perspectiva distante das análises territoriais ou nacionais. Ele preferiu atentar para o comércio global e as conexões que se estabeleciam entre os continentes americano e africano.

O estudante foi orientado por Frédéric Mauro, com quem trabalhou por quinze anos. Ele também desfrutou das aulas de Fernand Braudel, mestre que criou toda uma geração de alunos reunida em torno do projeto de realizar uma nova agenda histórica. Mais do que as relações locais e regionais, interessava agora mostrar como bens, pessoas, comércios e produtos circulavam pelo Atlântico.

Já a ciência política fez com que o estudante ficasse plugado nos problemas brasileiros e em suas mazelas. Aliás, o desterro o conectou ainda mais ao país que foi obrigado a deixar. “Eu não queria ser só historiador”, escreveu. “Eu queria ser historiador do Brasil.” Não por acaso Luiz Felipe foi um dos primeiros defensores da política de cotas por aqui, sempre atento “ao estrago que os portugueses fizeram na África portuguesa, em particular”, mas também na economia brasileira. 

Pseudônimo contra a ditadura

Sem desviar os olhos do Brasil, e ainda durante o período militar, Alencastro inventou um pseudônimo e mudou de gênero quando fazia análises do país para o jornal Le Monde Diplomatique. Nesses casos, ele era “Julia Juruna”, articulista que não se cansava de destacar aspectos fundamentais da nossa frágil República: o sistema eleitoral falho, o racismo estrutural, a economia instável.

‘O trato dos viventes’, lançado em 2000, aborda esse vasto e brutal comércio de seres humanos realizado ininterruptamente até meados do século 19

No ano de 1979, a Anistia lhe abriu a oportunidade de, finalmente, planejar sua volta. E assim, depois de vinte anos no exílio, o pesquisador retornava ao país. Professor de história do Brasil, dizia, precisa morar no Brasil.

Estamos no ano de 1986 e Luiz Felipe de Alencastro aportava com uma mala cheia de ideias, intenções e projetos. Entrou no Cebrap, onde conviveu com vários intelectuais, em sua maioria filiados ao PT e ao PSDB, bem como passou a dar aulas no Instituto de Economia da Unicamp. Foi por lá que defendeu sua tese de livre-docência e aproximou o Estado do Brasil da África Ocidental e da bacia do rio da Prata. Isso sem esquecer a conexão que o Estado do Grão-Pará e Maranhão firmara com a bacia Amazônica, com o Caribe e com a América do Norte. Sua tese teria o papel de renovar os estudos locais, segundo ele, por demais “territorializados”. “O Brasil tem o corpo na América e a alma na África”, provocava o historiador, mostrando como todos os ciclos econômicos se mostraram dependentes do uso intenso e regular do “tráfico de almas”. 

O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, lançado em 2000, que aborda esse vasto e brutal comércio de seres humanos realizado ininterruptamente até meados do século 19, analisa mais especificamente os séculos 16 e 17. Mesmo assim, a obra se tornou incontornável, sendo que o historiador — faz tempo — promete um tão esperado quanto necessário novo livro, que analisará o século 19. Com as ideias prontas, mas a escrita final atrasada, Luiz Felipe anuncia ainda outra obra que adentrará, por sua vez, pelo século 20 afora. 

Os pulmões do Brasil

Com mais livros ou sem eles, o certo é que foi Luiz Felipe quem comprovou como o Brasil “tinha um pulmão em Angola”; aliás, tese que se contrapõe, nos dias de hoje, às narrativas históricas “revisionistas” que mais contemporaneamente vêm fazendo certo sucesso no país, junto com a onda reacionária
que invadiu o Brasil. 

Além das relações Brasil/África, outro tema perseguido por Alencastro é a nossa enraizada, complexa e arredia desigualdade social. Para provocar e fazer barulho, o historiador trombou de frente com as comemorações nacionalistas dos “500 anos do Brasil”, revelando como, mais do que um Descobrimento, esse foi, na verdade, um grande desencontro entre povos.

O investigador virou também uma espécie de oráculo quando, mesmo não prevendo o impeachment de Dilma Rousseff, em agosto de 2016, antecipou receios acerca de uma possível subida de Michel Temer ao poder. “A falência do governo Lula pode trazer uma onda reacionária”, concluía ele em 2005, como se já vislumbrasse o que ocorreria onze anos depois. Falando em profecia, vale a pena lembrar também de como Alencastro sempre bateu pesado na tecla do nosso autoritarismo e de como “um possível regresso reacionário estava na mira dos conservadores e dos militares”.

Esses e outros temas, tratados com agudez por nosso historiador, podem agora ser mais bem apreciados no livro Encontros com Luiz Felipe de Alencastro, que traz uma série de entrevistas com o investigador, todas realizadas durante o período da assim chamada Nova República, mais exatamente de 1992 a 2017. O livro é organizado por Rodrigo Bonciani, pesquisador e professor da Unila, que assina também uma excelente apresentação do autor homenageado.

Tradições perversas

Muitas vezes ler entrevistas, distantes no tempo, mais se parece com um exercício monótono e tedioso. Mas não nesse caso. Luiz Felipe de Alencastro é sempre original em suas abordagens, tem uma retórica singular e eleva o tom quando se faz necessário. Voltando sempre ao tema da “pilhagem” formadora do país, o historiador mostra como no Brasil sobreviveu uma “dupla tradição perversa”. A primeira é a da escravidão, muito naturalizada em um país que durante mais de trezentos anos “viveu mergulhado na violência doméstica e na administração da tortura e do terror”. Ele destaca, nesse sentido, como se desenvolveu uma “infracidadania” generalizada para uma parte significativa da população, bem como se entronou a tortura nas mãos do Estado. 

A segunda perversidade sublinhada pelo autor veio da Inquisição ibérica. Segundo ele, a instituição significou uma reação da aristocracia contra a burguesia mercantil — e que, nas palavras dele, acabou “procurando judeus em toda parte”. Segundo o investigador, foi essa política que “estrangulou a emergência de uma burguesia interessada na ampliação dos direitos civis”, elemento fundamental na modernização da Europa.

A Inquisição, de outra parte, também privilegiou a confissão baseada na tortura e a transformou em prática legalizada. Por isso, assevera Luiz Felipe, “essa coisa de torturar, de humilhar o suspeito, de ocultar o denunciador é algo que atravessou Portugal moderno e ameaçou o colonato do Brasil durante algum tempo”. Essa seria uma herança pesada, uma vez que a confissão obtida pela força virou prova definitiva de culpa, influenciando as práticas policiais e até mesmo o ensino do direito.

Em julho de 1996, o historiador já prognosticava que o “custo Brasil” seria a não democratização da sociedade. Se muitos se enganaram com o período de democracia— se não completa, pelo menos plena — que se inaugurou a partir de 1988, quando foi promulgada nossa Constituição Cidadã, já Alencastro alertava naquela ocasião que “a integração consistente no processo de globalização se fará através de nações sólidas. As que não tiverem uma coesão social sólida vão virar mercado: não vão virar sociedades econômicas nem sociedades democráticas. Elas vão se esgarçar”.

Eric Hobsbawm, em seu livro Era dos extremos (1994), definiu os historiadores como “memorialistas profissionais do que seus colegas cidadãos desejam esquecer”. Já Peter Burke apelou para uma interpretação mais bem-humorada, mas não menos contundente: “Houve outrora um funcionário chamado ‘Lembrete’. O título na verdade era um eufemismo para cobrador de dívidas. A tarefa oficial era lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido”.

O papel do historiador

A função do historiador é, assim, “deixar um lembrete” sobre aquilo que se costuma fazer questão de esquecer. Pois bem, Luiz Felipe de Alencastro sempre funcionou como um bom “lembrete” acerca do nosso “passado”, mas também das nossas persistências no tempo “presente”, detectadas nas teimosas estruturas sociais e econômicas desiguais, nas heranças que trazemos do tempo colonial, mas que temos “dado um jeito” de recriar no presente. O racismo, o fato de contarmos com a polícia mais violenta do mundo, as nossas instituições frágeis e uma democracia pouco consistente são alguns dos elementos que, segundo o historiador, permanecem bastante inalterados na nossa contemporaneidade.

Transformar a maioria social do país em maioria política continua a ser o objetivo (não cumprido) de uma esquerda democrática e progressista

Infelizmente, passados mais de dez anos, vivemos não do conflito aberto de interesses, mas de uma política que se pauta pela disseminação do ódio e que explora não só o fortalecimento como também o enrijecimento de polaridades políticas, tratando adversários como inimigos. Transformar a maioria social do país em maioria política, em agentes de fato, continua a ser o objetivo
(ainda não cumprido) de uma esquerda democrática e progressista que ainda patina para ocupar seu lugar nesse jogo brasileiro.

Nos idos de 2006, o professor “lembrou” que não resolveríamos os problemas legados pela miséria e pelas desigualdades jogando tudo no colo dos evangélicos e da polícia. Pois começo e termino esta resenha com as palavras sintéticas e certeiras de Alencastro, que parece, a despeito de tantos sinais contrários, ainda apostar nas bases democráticas. Aliás, segundo ele, “a ideia de conflito de interesses é fundamental no funcionamento da democracia”. 

Quem escreveu esse texto

Lilia Moritz Schwarcz

É professora titular da USP e autora de O espetáculo das raças (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.