História,

As bruxas estão à solta

Três lançamentos trazem visões diferentes sobre a história da bruxaria e fazem conexões com o tempo presente

23set2019 | Edição #27 out.2019

Tempos obscuros são solo fértil para fazer surgir o interesse pelo tema da bruxaria e de sua contrapartida, as atitudes persecutórias de magistrados e inquisidores. Não foi por acaso que o dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005) escreveu, em 1953, sua peça The Crucible (traduzido como As bruxas de Salem), sobre os eventos de 1692, ocorridos em Massachusetts, então colônia britânica. O drama fazia conexões claras entre a dinâmica dos julgamentos das acusadas de bruxaria e os procedimentos do senador Joseph McCarthy (1908-57), que empreendia uma caça a supostos comunistas nos Estados Unidos, em meio à Guerra Fria. O próprio Miller foi convocado a depor perante o Comitê de Atividades Antiamericanas. Não por coincidência, algumas das melhores investigações historiográficas sobre a Inquisição portuguesa foram produzidas durante a década de 1960, período em que a ditadura salazarista ainda controlava aquela sociedade.

Em uma época como a nossa, na qual o feminicídio assume proporções tão preocupantes, é difícil esquecer os dramas da Salem colonial (embora ali não tenham sido executadas apenas mulheres) ou as demais perseguições do início da época moderna que  rotulamos como “caça às bruxas”. Num momento no qual pessoas temerosas encontram em fake news modos duvidosos de exorcizar seus pavores, os depoimentos contraditórios de tantos processos de bruxaria, assim como os estranhos procedimentos de seus juízes, nos vêm à mente com facilidade.

Uma consideração sintética sobre três livros lançados recentemente sobre o tema pode tomar como ponto de partida a ideia da bruxaria sendo explorada em três tempos distintos. O livro de Jeffrey B. Russell e Brooks Alexander, História da bruxaria, trabalha com a “longa duração”, o tempo estrutural, no qual ideias se formam e se sedimentam lentamente. A edição original — da Thames & Hudson — é de 2007, mas já se tratava de versão revisada do antigo A history of witchcraft, que Russell publicou em 1980 e que a editora Campus lançou em 1993, sob o título de História da feitiçaria.

A nova edição de Russell traz modificações importantes. Ela vem acompanhada por dois capítulos inéditos, de autoria de Alexander: “Bruxaria neopagã: as origens” e “Bruxaria neopagã: o movimento”, em substituição ao capítulo da versão original “A religião das bruxas”, que pretendia ser uma síntese desses movimentos contemporâneos. Aqui se pode, efetivamente, falar de uma completa remodelação, com a exclusão de vários materiais e a tentativa de incluir novas referências bibliográficas. Apesar de a objetividade ficar um pouco comprometida pela inegável simpatia com que Alexander retrata esses movimentos atuais, é leitura interessante e capaz de fornecer um quadro sintético dessas tendências religiosas.

Já o capítulo “Sobrevivências e ressurgimentos” trazia na edição original um tópico final sobre “Satanismo”, sendo que na versão atual o trecho foi inteiramente suprimido, provocando estranheza por não acharmos mais no livro menção alguma a Anton LaVey (1930-97), fundador da Igreja de Satã, em 1966. A nova edição também silencia sobre Charles Manson (1934-2017), famoso pelo assassinato da atriz Sharon Tate, em 1969, e envolvido de forma explícita com um culto que se dizia satânico. Com essa supressão, a própria questão da inexistência de relações entre bruxaria contemporânea e satanismo — ponto importante na argumentação original de Russell — acaba silenciada. Como o tempo passou, esse alerta provavelmente se tornou desnecessário.

A tese central de Russell é a de que a feitiçaria constitui um continuum na história humana, do passado sumério até os contextos africanos e os povos do Pacífico sul. Diante desse continuum de antigas crenças, o contato com a demonologia, observado na bruxaria europeia de inícios da época moderna, seria incidental, fomentado a partir dos preconceitos introduzidos por uma religião cristã pródiga em reler como diabólicos antigos fenômenos religiosos. Nessa reconstrução, o que Russell perde de vista é exatamente a especificidade da bruxaria europeia do início da era moderna: um sistema de crenças em que a ligação com a demonologia não era incidental, mas estrutural. Essa percepção constitui o coração do alentado Pensando com demônios: a ideia de bruxaria no princípio da Europa moderna (Edusp), que Stuart Clark publicou em 1997 e que Russell praticamente ignora, apesar de relacioná-lo na bibliografia.

A lição de Clark, incorporada pela maioria dos estudiosos atuais do tema, é de que a bruxaria europeia de inícios da época moderna deve ser compreendida enquanto tal e não como parte de um suposto continuum que, atravessando tempos e lugares, chegaria até a época atual. Dessa forma, uma “história da bruxaria”, nos moldes pretendidos por Russell, não é um projeto viável pelo simples fato de não existir, como ele supõe, “feitiçaria […] em escala mundial”. A proposta aproxima e homogeneiza fenômenos diferentes, distantes no tempo e no espaço (como as crenças egípcias, sumérias, hebraicas, a magia azande, a bruxaria da Europa de inícios da época moderna e os cultos wicca da atualidade). São grandezas que só podem ser compreendidas, cada uma, em sua própria especificidade. Uma lição que a história, enquanto ciência humana, aprendeu com a antropologia. De resto, o texto de Russell procura dar um tratamento sintético desse fenômeno, mas traz algumas falhas: o autor abusa das conexões com o poder político, maximizando a ideia de um “programa” de conversão da feitiçaria (o substrato das crenças populares) em bruxaria diabólica pela ação interesseira de papas e príncipes. O historiador, que é professor emérito na Universidade da Califórnia, ignora, assim, o estranhamento com que os fenômenos políticos ocidentais do fim do período medieval e inícios da época moderna devem ser contemplados. Tratava-se de outra política, cujo imbricamento com a religião não corresponde àquilo com que estamos habituados em nossa época.

Cercamento de corpos

A preocupação de Silvia Federici em Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais pode ser situada numa outra temporalidade: o tempo conjuntural, mais restrito cronologicamente e em que se procura captar alguns processos específicos. Publicado em 2018 pela pm Press, o livro é, na verdade, uma síntese bastante reduzida do famoso Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Elefante), lançado em 2017.

Na primeira parte de Mulheres e caça às bruxas, Federici resume, em cinco ensaios produzidos para diferentes circunstâncias, os principais argumentos de sua obra anterior, em que procurou complementar o conceito marxista de acumulação primitiva do capital. Para Marx, esse processo de acumulação foi decisivo para que uma nova classe, a burguesia, promovesse a superação das estruturas feudais, preparando o surgimento do proletariado industrial. Para Federici, a análise marxista deixou de lado o aspecto negativo da acumulação primitiva, em especial a destruição das formas comunais da economia e da sociedade através dos cercamentos (enclosures) territoriais, processos pelos quais as terras comunais foram “privatizadas” e convertidas em pastagens para criação de rebanhos destinados à produção de lã para a indústria têxtil.

Trata-se de uma leitura que possui aspectos instigantes, como a seguinte advertência, feita a propósito do combate a crenças populares, alcunhadas de “supersticiosas”: “Era um universo que hoje chamamos de supersticioso, mas que, ao mesmo tempo, nos alerta para a existência de outras possibilidades de relação com o mundo. Nesse sentido, temos de pensar nos cercamentos como um fenômeno mais amplo que a simples separação da terra por cercas. Devemos pensar em um cercamento de conhecimento, de nosso corpo, de nossa relação com as outras pessoas e com a natureza”. Mas a proposta de Federici apresenta uma fraqueza central ao procurar nesses processos geradores da acumulação primitiva do capital a principal razão para o fenômeno da bruxaria europeia moderna. Para a autora, as mulheres deveriam ser disciplinadas, não apenas por causa da resistência que poderiam opor aos esforços de superação das formas comunais de vida, mas também pela necessidade de se controlar seus corpos e suas rotinas, tendo em vista as tarefas reprodutivas e de sustento da mão de obra masculina às quais o capitalismo nascente deveria confiná-las.

Essa interpretação supõe um grau exagerado de articulação e de autoconsciência por parte de forças capitalistas que ainda se encontravam em desenvolvimento, visto que o processo de acumulação primitiva apenas principiava. Mais grave do que isso, todavia, é o fato de que, ao propor uma explicação para a bruxaria que se prende aos primórdios do capitalismo moderno e ao escolher — como Marx — a Inglaterra como lugar ideal para esse desenvolvimento, Federici acaba por reproduzir uma visão histórica estreita, que impõe o “modelo inglês” de desenvolvimento do capitalismo à realidade mais global de articulação e de expansão de uma economia-mundo a partir do século 15.

O caso inglês parece a ela emblemático, assim como pareceu a Marx. Mas a explicação de Federici não dá conta de nos fazer entender como o fenômeno da “caça às bruxas” se expandiu por uma Europa que estava longe de apresentar as mesmas características intensas de acumulação primitiva de capital, ou onde essa acumulação se processava de formas bem diversas. A explicação radicalmente infraestrutural de Federici nada tem a nos dizer sobre as perseguições a bruxas na Europa do leste, ou mesmo em vastas regiões da Europa central, onde as novas relações econômicas ensejadas pelo capitalismo nascente demoraram a ser percebidas.

A segunda parte do livro se dedica ao fenômeno do “ressurgimento” contemporâneo da caça às bruxas nos contextos africanos, um revival que Federici atribui às manobras internacionais para privatização do solo e ao inevitável cancelamento das formas comunais de subsistência naqueles territórios. É, de longe, a parte mais interessante do trabalho de Federici e contém agudas críticas, tanto às agências internacionais (Nações Unidas, inclusive) como aos movimentos feministas que têm silenciado sobre a violência ali cometida contra as mulheres. Mas, ao privilegiar de novo uma perspectiva francamente infraestrutural, dando primazia às relações econômicas, Federici minimiza o papel da crença, que faz com que a explicação pela via da bruxaria seja possível num contexto e não em outros, bem como reduz a agência dos próprios sujeitos culturais em sua capacidade de produção simbólica. A autora não percebe que, condoída pela espoliação econômica sofrida pelas sociedades africanas, sua explicação representa também uma forma de espoliação antropológica das mesmas comunidades, ao minimizar seu papel enquanto produtores de cultura.

Finalmente, ao estabelecer a correlação entre o que acontece hoje na África e o que aconteceu na Europa no início da época moderna, Federici perde de vista a especificidade tanto daquele fenômeno do passado como dos fenômenos contemporâneos. O que se passa hoje no continente africano deve ser estudado a partir do que possui de específico, inclusive com atenção para a possível manipulação do rótulo “bruxaria” por movimentos religiosos sincréticos, mas sem que se presuma uma continuidade estrita em relação ao que ocorreu na Europa da primeira modernidade. Deve-se notar que a justeza da luta política na atualidade — pela libertação feminina plena, pela superação do feminicídio, pela integridade das mulheres que são aviltadas em várias partes do mundo — não depende de uma vinculação a nenhum fenômeno histórico do passado.

Silvia Federici teve a coragem de ir além de Marx ao propor que o conceito de “acumulação primitiva do capital” possuía uma face obscura, ligada ao “cercamento” dos corpos, à liquidação das formas comunais de vida e à pauperização de comunidades inteiras, mas falha ao encontrar aí as razões da bruxaria europeia moderna, bem como ao supor uma continuidade estrita entre aquelas perseguições e o que se faz atualmente contra as mulheres. Retomando Stuart Clark, que Federici também ignora em seu trabalho, podemos afirmar que a grande questão em torno do tema “mulheres e bruxas” na Europa da primeira modernidade não consiste em perguntar por que as mulheres foram acusadas de bruxaria, mas em inquirir por que a manifestação do preconceito contra as mulheres se deu então pelo ato de acusá-las de bruxaria, quando outras acusações poderiam ter sido feitas.

Para além da histeria

Por sua vez, o tempo de Stacy Schiff em As bruxas: intriga, traição e histeria em Salem pode ser descrito como o da micro-história. Especialista em biografias, Schiff é uma escritora excelente. Num texto ágil, de frases curtas e quase nenhuma oração subordinada, seu livro se dedica ao ano fatídico de 1692 na aldeia (e na cidade) de Salem, procurando descrever como as perturbações das meninas da família do reverendo Samuel Parris acabaram por provocar um pânico que se espalhou pela colônia de Massachusetts, conduziu à prisão mais de 120 suspeitos e levou à morte por enforcamento catorze mulheres e cinco homens.

Esse percurso — esmiuçado com riqueza de detalhes — é feito em dez capítulos que mostram desde as primeiras denúncias até as últimas execuções e a hesitante e constrangida interrupção dos julgamentos pelas autoridades da colônia, entremeando-se ao dia a dia dos procedimentos e à incrível massa humana de envolvidos. Os dois últimos capítulos se ocupam do complicado day after dos processos, marcado pelo retorno à convivência entre acusadores e acusados que sobreviveram, bem como do legado desse episódio para a cultura norte-americana.

Em favor do trabalho de Schiff, é preciso reconhecer a competência com que a autora manejou os fundos documentais: ela percorreu os registros processuais que sobreviveram, bem como as cartas, diários, panfletos, obras apologéticas e sermões produzidos em quantidade vertiginosa. Ao mesmo tempo, ela demonstra ter feito a lição de casa bibliográfica: leu os trabalhos publicados no século 19 e na primeira metade do 20, a vasta produção dos anos 1970 e os trabalhos mais recentes. Entre as observações inteligentes feitas por ela, é interessante notar como o caso de Salem parece desmontar a explicação proposta por Silvia Federici: “Bruxas podiam ser homens ou mulheres, mendigas itinerantes ou ricas fazendeiras, membros de igreja ou forasteiros”. O fenômeno aparece, assim, em sua complexidade: os acusados não eram somente mulheres, nem eram apenas mulheres pobres.

O trabalho de Schiff é essencialmente descritivo: ela relata — e relata bem —, mas não procura, no geral, interpretar o que se passou em Salem. São raras, em seu texto, passagens como esta, sobre as meninas que desempenharam o papel central nas acusações: “A maioria das meninas enfeitiçadas havia perdido os pais, quase sempre em ataques de indígenas. Isso as deixava instáveis quanto a casamento e herança, quando não famintas de atenção masculina”. E mais à frente: “Uma jovem observou que suas irmãs convulsas pareciam ser objeto do amor e dos cuidados dos pais. Não demorou muito para ela apresentar os mesmos sintomas”.

Schiff não perde de vista as conexões políticas, nem ignora os conflitos de interesses que opuseram acusadores e acusados; mas tem o mérito de não atribuir a nenhum desses motivos uma explicação prioritária para o fenômeno. Com isso, a autora resguarda o caráter complexo do episódio: havia provavelmente a carência infantil das meninas, mas também o peso simbólico da religiosidade puritana, concentrada no arrependimento e na necessidade premente da confissão; o peso empírico da cinzenta vida na colônia onde o trabalho feminino era especialmente desgastante; o clero formado por suas leituras exaustivas da demonologia europeia; a necessidade política de firmar a capacidade de autogoverno de uma Massachusetts que acabava de recuperar seu foral, o documento real que afirmava sua identidade cívica. Schiff não afasta a possibilidade da histeria, explicação privilegiada desde o século 19, nem o peso das tensões e frustrações sexuais. Mas é digno de nota que o subtítulo original de seu texto seja mais sóbrio do que o proposto pela tradução brasileira, que parece colocar “intriga, traição e histeria” como elementos-chave de explicação.

O leitor ficará surpreso, sem dúvida, pelo torvelinho alucinado de denúncias, confissões, admissões de voos noturnos e visões fantasmagóricas e espectrais. Mas talvez se impressione mais com algo que Schiff — sensível para um elemento fundamental da atividade historiográfica, que é o reconhecimento da alteridade temporal — capta com discrição: aquela era outra época, seus procedimentos eram diferentes dos nossos, suas lógicas eram distintas.

A autora percebeu, com acerto, que para a produção da “caça às bruxas” na época moderna não bastavam motivos sociais ou desculpas para interesses políticos. Era preciso um sistema de crenças que tornasse lógica a bruxaria e um aparato legal que adotasse como base esse mesmo sistema. Essa crença arraigada explica por que, entre as acusadas metidas numa mesma cela ou conduzidas à execução na mesma carroça, cada uma protestava sua inocência enquanto acreditava na culpa de suas companheiras. 

Foto: Fernanda Montenegro por Mariana Maltoni​ 
Direção criativa: Luciano Schmitz
Edição de moda: Marcell Maia
Beleza: Dindi Hojah
Cenografia: Luciano Schmitz, Anderson Rodrigues e Pedro Flutt​
Tratamento: Studio Bruno Rezende​
Assistentes de fotografia: Naelson Castro e João Júlio Melo
Produção de moda: Luiza Gil e Mariana Corrêa

Quem escreveu esse texto

Rui Luis Rodrigues

É historiador.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.