Filosofia,

Ensaísta feroz

Agudos, profundos e com uma ponta de arrogância, ensaios de filósofo coreano fornecem chaves para compreender o nosso tempo

15nov2018

Agudo decifrador das calamidades do presente, Byung-Chul Han é também, ele próprio, um fenômeno de nossa época. O autor dos dois livros aqui resenhados não se parece com o clássico intelectual europeu, tampouco com o acadêmico que profere seus saberes desde o púlpito de uma renomada universidade estadunidense. A sua peculiaridade, contudo, não se restringe ao exotismo de ser asiático e ter um nome impronunciável para boa parte dos ocidentais, mas se concentra sobretudo no seu estilo inconfundível e — em vários sentidos — absolutamente contemporâneo.

Nascido em Seul, em 1959, Han tinha pouco mais de vinte anos e estudava metalurgia quando resolveu emigrar para a Alemanha, onde se doutorou em 1994 com uma tese sobre Heidegger. Em seguida, fez uma carreira meteórica, passando pelas universidades de Basel e Karlsruhe, até que, em 2012, se estabeleceu como professor em Berlim. Desde então, assinou quase duas dezenas de livros, muitos dos quais tiveram enorme sucesso e chamaram a atenção de editoras do mundo inteiro, o que resultou em traduções para múltiplas línguas e uma inusitada repercussão global.

A grande guinada aconteceu com A sociedade do cansaço, de 2010, um dos títulos agora publicados em português, assim como A sociedade da transparência, cuja edição original data de 2012. Outros ensaios lançados por Han nos últimos anos foram Topologia da violência (2011), No enxame: reflexões sobre o digital (2013), A agonia de Eros (2014), Psicopolítica (2014), A salvação do belo (2015) e A expulsão do diferente (2016).

São muitas as características comuns a todas essas obras, a começar pela temática: o foco sempre recai sobre certas mazelas demasiadamente contemporâneas. Por exemplo, o fastio do burburinho nas redes sociais; a ilusão de autonomia profissional camuflando uma “autoexploração” cada vez mais depressiva pelo bom desempenho; a falta de tempo para a contemplação e a reflexão na correria consumista; a dificuldade para se relacionar com os outros numa sociedade marcada pelo narcisismo.

Violência da positividade

“Vivemos numa época pobre de negatividade”, eis um dos principais argumentos de A sociedade do cansaço. Isso não teria impedido, porém, o desenvolvimento de formas peculiares de violência, mais sutis e invisíveis, próprias de “uma sociedade permissiva e pacificada”. Assim, contrariamente ao que ocorria algum tempo atrás, essa violência da positividade que hoje impera “não é privativa, mas saturante; não excludente, mas exaustiva”. Sob lemas como o famoso “Yes, we can”, ao qual poderíamos acrescentar outros como “Just do it” ou “porque eu mereço”, Byung-Chul Han parece acertar em cheio: “No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação”.

Todo esse estímulo positivo, porém, cansa: “A sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados”. O paradoxo é complicado, pois, ao acreditarmos que nos libertamos de todas as opressões que vinham de fora, vemo-nos enredados em coações autodestrutivas que são altamente eficientes, entre outros motivos “porque a vítima dessa violência imagina ser alguém livre”.

Já em A sociedade da transparência, o autor arremete contra a mania de exposição que hoje também abunda, e que estaria igualmente afiliada a essa tola positividade sem sombras nem relevos. “Tudo deve tornar-se visível; o imperativo da transparência coloca em suspeita tudo o que não se submete à visibilidade”, constata. Quando a informação e a comunicação penetram por toda parte, sem deixar margem alguma ao mistério, destrói-se algo primordial para os relacionamentos humanos: a confiança. 

“A intensa exigência por transparência aponta precisamente para o fato de que o fundamento moral da sociedade se tornou frágil”, após o declínio de valores outrora bastante prezados como a honestidade e a sinceridade. Assim, vivemos numa “sociedade da desconfiança e da suspeita que, em virtude do desaparecimento da confiança, agarra-se ao controle”.

Sem desconhecer a sagacidade nem a ousadia que emanam desses oportunos lampejos, também é necessário admitir que Han está longe de ser o único ensaísta a oferecer uma visão descarnada e lúcida dos modos de vida mais habituais na atualidade. Inúmeros autores vêm se dedicando, há décadas, a estudar esses assuntos; alguns dos quais inclusive comparecem — de modo explícito ou implícito — nos textos de Han. Por isso, a chave de seu atípico sucesso provavelmente resida em outra parte: no formato em que ele se expressa, que sem dúvida é singular e vale a pena esmiuçar.

Todos os seus livros são pequenos e breves: poucas páginas, num tamanho que cabe no bolso — tanto por sua leveza como por seu preço — e uma apresentação gráfica convidativa, com letras grandes e reconfortantes espaços em branco. Os títulos seduzem pela contundência, são chamativos e eficazes por prometerem algo que de fato não escamoteiam: a tentação irresistível de um diagnóstico rápido e preciso sobre a confusa complexidade do mundo atual. Pontilhadas por vários subtítulos igualmente atraentes, as páginas fluem disparando frases ágeis e incisivas, por vezes extremamente assertivas, que parecem surgir do papel como rajadas de uma metralhadora.

A escrita de Byung-Chul Han não é particularmente bela, elaborada ou vigorosa. Sem se preocupar com as firulas da graça literária nem com a originalidade de uma voz própria no sentido estético, ele prioriza o impacto das agulhas que são expelidas uma após a outra, misturando alusões que remetem às vivências cotidianas com citações de prestigiados filósofos, artistas e cientistas sociais. Assim, fica sempre esboçada uma certa verdade sem fissuras ou atenuantes, que, embora costume ser terrível, não deixa de produzir um efeito “tranquilizador” no leitor ao providenciar uma compreensão total do quadro sob análise.

Ferocidade crítica

Nesse sentido, cabe destacar a sua afinidade não só teórica mas também estilística com Jean Baudrillard, o ensaísta francês que brilhou nos anos 1980 e 90 com vários best-sellers sobre as transformações históricas que estavam ocorrendo naquela época. De fato, ele é um dos autores mais citados por Han, e também um dos que mais se salvam de sua ferocidade crítica. 

Porque uma das marcas do ensaísta coreano é, precisamente, a curiosa relação que ele tece com seus interlocutores ou referentes bibliográficos. Em muitos casos, talvez em virtude da celeridade do seu pensamento, conceitos alheios são mobilizados sem dar o devido crédito a seus autores; em várias ocasiões, porém, esse reconhecimento só se efetua para apontar os “erros” ou a insuficiência do trabalho dos outros; lacunas que ele, a seguir, se ocupa de ressarcir.

Giorgio Agamben, Alain Ehrenberg, Roberto Esposito, Richard Sennett e até Hannah Arendt e Michel Foucault, por exemplo, são acusados de serem “pouco convincentes” em algum ponto, de “não se darem conta” ou “não conseguirem captar” alguma coisa, de “tirarem conclusões equivocadas” ou terem “passado por alto” algo fundamental. Em seguida, ele se encarrega de “corrigir” esses deslizes. Assim, em vez de festejar a gloriosa possibilidade de pensar junto, agradecendo com generosidade e elegância as trocas polifônicas que sempre subjazem nessa atividade, aqui comparece um certo páthos competitivo e narcísico, que também não deixa de ser extremamente atual.

Poderia se tratar de um detalhe menor, que revela uma arrogância mal contida ou uma mesquinharia gulosa sem maior importância, mas o problema é que muitas dessas acusações são injustas. Conta-se, portanto, com o desconhecimento cúmplice ou desatento do leitor, que não recorrerá às fontes para conferir essas supostas falhas dos autores alvejados e, na pressa, irá endossar as teses de quem cantou por último e supostamente melhor — ou gritando mais alto. Uma aposta que também parece mais alinhada com a dinâmica hoje triunfante das redes sociais, com seus códigos emprestados do espetáculo midiático e do mercado, do que com os velhos rituais da “cidade letrada”.

O caso mais impressionante é o de Gilles Deleuze. Evidentemente, Han se apropria do conceito de “sociedade de controle” cunhado pelo filósofo francês em 1990, a ponto de usar essa expressão como título para o último dos nove capítulos de seu livro A sociedade da transparência. Contudo, não há menção alguma a esse trabalho ao longo dos dois livros aqui resenhados. A única ocasião em que o nome de Deleuze aparece referenciado é num rodapé do sexto capítulo de A sociedade do cansaço, dedicado ao “Caso Bartleby”, para ilustrar o que ele considera com desdém “uma das diversas interpretações metafísicas ou teológicas” do célebre relato de Melville. 

Quanto às contribuições do filósofo para as suas próprias teorias sobre a sociedade contemporânea, que são óbvias e sem dúvida muito fecundas, ele as despacha nas páginas iniciais desse mesmo livro com duas enigmáticas sentenças e sem sequer nomear o autor. “Também aquele conceito de ‘sociedade de controle’ não dá mais conta de explicar aquela mudança”, garante Han, e em seguida proclama o singelo motivo: “Ele contém sempre ainda muita negatividade”.

A leitura de Han é uma aventura vertiginosa, da qual é possível extrair pistas valiosas para enxergar o presente, apesar do ‘excesso de positividade’

Byung-Chul Han já foi apelidado de “filósofo viral”, por constituir um fenômeno raro entre os autores desse gênero, comparável portanto a outros poucos colegas como Zygmunt Bauman ou Slavoj Zizek. Neste caso, porém, o mote parece ainda mais adequado, talvez por pertencer a uma geração mais recente e, nesse sentido, ter uma sintonia mais afinada com o espírito do século 21. O fato é que tanto a sua figura como a sua obra são sintomáticas do panorama que ele mesmo descreve. Por isso, ao ler seus veredictos sobre as misérias da vida atual, às vezes tem-se a impressão de que o autor está também se referindo a seu próprio modo de pensar e escrever. “A complexidade retarda a velocidade da comunicação”, assevera em A sociedade da transparência; por isso, “a hipercomunicação anestésica, para acelerar-se, reduz a complexidade”.

Ler os livros de Han consiste, portanto, numa aventura vertiginosa, da qual é possível extrair muitas pistas valiosas para enxergar o presente e tentar intervir nele. Se seus textos sofrem do tal “excesso de positividade” que ele denuncia com tanto afinco — pois as suas afirmações são tão categóricas que repelem qualquer obstáculo ou vacilação —, isso pode até ser um valor agregado nessa travessia da leitura.

O vazio deixado pelas antigas certezas é, também, uma causa frequente de sofrimento na contemporaneidade, e as prateleiras estão cheias de soluções prontas para preencher essa ausência. Os livros fazem parte desse arsenal, mas eles talvez sejam os remédios com efeitos colaterais mais imprevistos e perigosos de que dispomos, sobretudo para aqueles que gostam de sondar nas entrelinhas. 

Quem escreveu esse texto

Paula Sibilia

Professora da UFF, é autora de O show do eu: a intimidade como espetáculo (Nova Fronteira).