Feminismo e Gênero, Política,

Sobre mulheres em motocicletas roxas

As mulheres hoje podem viajar ou morar sozinhas porque as feministas conquistaram esses direitos

05nov2018

“A democracia é simplesmente algo que você deve fazer todos os dias, como escovar os dentes”, é o que a mãe da escritora e ativista política norte-americana Gloria Steinem (1934) lhe dizia. “As histórias da minha mãe sobre o sofrimento durante a Depressão — e como Franklin e Eleanor Roosevelt nos ajudaram a sair dela — me ensinaram que a política é parte do nosso dia a dia. Ela descreveu como fazia sopa com restos de casca de batata e em seguida ouvia os discursos de Roosevelt no rádio para animar o espírito.” São histórias como essa, escritas com irresistível charme e que revelam o quanto o pessoal é político, que compõem a autobiografia Minha vida na estrada, publicada em agosto do ano passado nos EUA e que agora ganha edição brasileira.

O livro é dedicado ao médico John Sharpe, que assumiu o risco de praticar um procedimento abortivo clandestino, e criminoso à época, em uma jovem que acabara de terminar o noivado e sairia em busca de um destino desconhecido na Índia. A ela dr. Sharpe disse: “Você precisa me prometer duas coisas. Primeiro, que não vai dizer meu nome a ninguém. Segundo, que vai fazer o que quiser com a sua vida”. Gloria Steinem cumpriu a segunda promessa e inspirou gerações de mulheres através de suas falas públicas e articulações feministas a fazer o mesmo. 

Aos 83 anos de idade, a história de Gloria se mistura à história do movimento feminista nos Estados Unidos. Se hoje reconhecemos que braço-esticado-com-punho-cerrado é um gesto feminista, foi porque Gloria e sua parceira negra Dorothy Pitman-Hughes o fizeram lado a lado em foto icônica, de 1971 — época em que a segunda onda feminista se ergue e espalha pelo planeta. Sua contribuição é tão gigantesca, e em pautas tão diversas, sempre na luta por direitos, que, em 2013, o ex-presidente Barack Obama a condecorou com a Medalha da Liberdade, mais alta honraria dada a um cidadão civil americano.

Uma de suas contribuições de peso ao movimento foi fundar, na década de 1970, com um grupo grande de colaboradoras, a primeira revista feminista do país, que fosse dedicada “a fazer a revolução, e não apenas o jantar”. Nascia a  Ms., que permitiria Gloria unir suas paixões: escrita, ativismo e viagens. 

Sua autobiografia é a saga de “uma nômade moderna”. “Pegar a estrada  — e com isso quero dizer se deixar levar pela estrada — mudou quem eu achava que era. A estrada é confusa da mesma maneira que a vida real é. Ela nos leva da negação para a realidade, da teoria para a prática, da cautela para a ação, das estatísticas para a história — em resumo, para fora de nossas mentes e para dentro do nosso coração.” 

Gloria não dirige, e esta também é uma escolha da política cotidiana — não estar fechada em uma latinha é estar aberta às surpresas do caminho. Ainda no prelúdio do livro, ela narra o encontro, numa lanchonete de beira de estrada, com uma leitora da revista Ms.. A senhora, que pilotava uma Harley-Davidson roxa, se aproxima de Gloria para dizer o quanto a revista fora importante para ela e o marido, e conta: “Eu costumava andar na garupa do meu marido e nunca me aventurava sozinha na estrada. Então, depois que as crianças cresceram, bati o pé. Foi difícil, mas no fim nos tornamos parceiros”. Steinem conclui de forma perspicaz o episódio: “Passei a acreditar que dentro de cada um de nós há uma motocicleta roxa. Temos apenas que descobri-la — e sair pilotando”.   

A história de Gloria se mistura à história do movimento feminista nos EUA. Se hoje o braço esticado com o punho cerrado é um gesto feminista, foi porque ela o fez em 1971

O Brasil agrário e patriarcal de meados do século 19 e começo do século 20 assistiu atônito às primeiras mulheres que descobriram suas motocicletas roxas e saíram pilotando. Eram exceções escandalosas como a escritora e educadora Nísia Floresta (1810-85) ou a bióloga e sufragista Bertha Lutz (1894-1976). A livre tradução de Nísia — a “machona entre sinhazinhas dengosas”, como a caracterizou Gilberto Freyre — para o livro seminal do feminismo, escrito pela inglesa Mary Wollstonecraft, é considerado o texto fundador do feminismo no Brasil. Se no Brasil do século 21 toda mulher consegue votar, é graças ao pioneirismo de Bertha Lutz, entre outras. Se uma mulher pode viajar ou alugar um apartamento sem o consentimento do pai ou do marido, não precisa mais provar sua virgindade ao casar ou pode ir à universidade, é porque, em algum momento, outras mulheres feministas disputaram e conquistaram esses direitos para todas nós, feministas ou não, desfrutarmos. 

Feminismo no Brasil

“Até quando vamos começar livros e artigos com a afirmação de que a história das mulheres está sendo recentemente desvendada, considerada inexistente, oculta sob o manto da insignificância, desqualificada?”, provoca a socióloga Eva Blay, no capítulo “Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o caso brasileiro”, do volume 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile, organizado por ela e a também socióloga Lúcia Avelar, a partir da pesquisa homônima realizada no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da USP desde 2012. 

Alzira Soriano, a primeira prefeita eleita no país, em 1927, no Rio Grande do Norte. Carlota Pereira de Queirós, nossa primeira deputada federal, a única a assinar a Constituição de 1934 ao lado de outros 252 constituintes — todos homens. Maria Lacerda de Moura, a primeira a denunciar a educação alienante das mulheres. São três outras exceções à regra. Mas se alguém não chuta a porta, as demais não podem invadir.

Sabe-se, no entanto, que nenhum movimento instituinte surge sem resistências. “Já naqueles anos (1950) algumas mulheres comunistas manifestavam descontentamento diante da posição subalterna que ocupavam dentro da estrutura partidária. Embora fosse um partido progressista (PCB), nele a hierarquia nas relações de gênero assemelhavam-se à da sociedade brasileira moldada pelo patriarcado com forte herança escravocrata.” O marxismo inspirava os movimentos da esquerda nacional a travar a luta de classes — o “resto” viria com o tempo. Daí algumas pesquisadoras considerarem infeliz o casamento entre feminismo e marxismo — e Eva Blay afirma que “foram necessários 50 anos para que essa desunião encontrasse um caminho comum e bem-sucedido”. 

A “desunião” aprofundou-se na ditadura militar, quando muitas mulheres foram para a resistência lutar pela liberdade de seus maridos e filhos e/ou passaram a se reunir para discutir feminismo em grupos de estudo. Aquelas exiladas e autoexiladas, além de trabalhar pela própria subsistência e de suas famílias, puderam entrar em contato com o debate de gênero em outros países. Ou seja, se nos anos 70 as americanas viajam o país montadas em motocicletas roxas, as brasileiras tentavam sobreviver. 

50 anos de feminismo aborda as lutas e legados das feministas latino-americanas, numa linguagem quase transparente e agradável, mostrando os avanços, ou não, do que os autores chamam de uma “revolução silenciosa, porém incompleta”. Apesar disso, o que permanece “incompleto” no Brasil é enorme. Sobretudo no que diz respeito à violência e ao poder.

89% das vítimas de violência sexual no Brasil são mulheres; 50,3% dos assassinatos de mulheres registrados em 2013 foram cometidos por familiares; ? dos brasileiros foram testemunhas de um episódio de violência física ou simbólica contra mulher em 2016; em cada cinco mulheres, uma relatou já ter sofrido algum tipo de violência de algum homem, seja ele conhecido ou desconhecido; o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais. Diante do fato de o corpo da mulher ser um campo de batalha, é possível dizer que o feminismo já não é mais necessário do ponto de vista político?

“Tínhamos um conceito — o gênero —, objetos de pesquisa — a mulher, o feminino — e uma imensa questão: compreender por que a diferença sexual ainda nos inferioriza”, escrevem Carla Rodrigues, Luciana Borges e Tânia Regina Oliveira Ramos, na apresentação da antologia por elas organizada: Problemas de gênero.

Através da pluralidade de textos, entramos em contato com a escrita das mulheres que pensaram e protagonizaram as quatro ondas do movimento no Brasil. A seleção abarca ativistas da rede como Juliana de Faria, acadêmicas capazes de incidir na política institucional como Débora Diniz, pensadoras negras como Sueli Carneiro, escritoras de diferentes gerações como Alice Sant’Anna e Clarice Lispector, e precursoras do feminismo como Pagu. 

Em "Nosso corpo nos pertence: uma reflexão pós-ano 1970", da socióloga e ex-ministra Eleonora Menicucci, somos lembradas de que, no bojo da revolução sexual, vieram as primeiras demandas por autonomia dos corpos femininos. Data da década de 1970 a reivindicação “nosso corpo nos pertence”, cujo “meu corpo minhas regras” é sua versão 2.0. Estamos há quase 50 anos berrando as mesmas palavras. 

“Nosso corpo nos pertence”

“Que as decisões sobre seus próprios corpos não pertençam às mulheres é uma contradição que ainda muito poucas conseguem avaliar”, escreve a filósofa e criadora da #PartidA, Marcia Tiburi, no capítulo "Aborto como metáfora". Metáfora de quê? Do moralismo patriarcal, que fala sobre o aborto, embora não o pratique, que legisla sobre ele, embora não morra pelas consequências de um procedimento clandestino. Ao longo do texto, Tiburi descontrói a argumentação que confina o debate sobre maternidade voluntária no campo moral e afirma: “Somente as mulheres em seus próprios grupos podem quebrar o círculo no qual foram capturadas… Não ter voz significa não pertencer à política”. Fato que, para a autora, “vem apenas comprovar o estágio precário do feminismo no Brasil quanto à questão da liberdade das mulheres, apesar de tantas lutadoras da causa dos direitos femininos”. 

A questão da maternidade voluntária é constitutiva ao feminismo, desde seus primórdios. No texto “Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos”, do clássico volume Mulheres, raça e classe, publicado originalmente em 1981, que finalmente sai no Brasil, a ativista negra Angela Davis (1944) constrói o panorama do debate sobre direito ao próprio corpo, feito nos Estados Unidos na década de 1970, mas a partir da perspectiva da mulher negra. 

É inquietante que Mulher, raça e classe, bibliografia “fundamental para se entender as nuances de opressão […] que nos dá a dimensão da impossibilidade de pensar um projeto de nação que desconsidere a questão racial, já que sociedades escravocratas foram fundadas no racismo”, como caracteriza a ativista Djamila Ribeiro no prefácio do livro, tenha sido publicado aqui somente agora. Davis é o maior ícone vivo do feminismo negro. Membra dos Panteras Negras e do Partido Comunista, foi a terceira mulher a integrar a lista dos mais procurados dos EUA. Acabou sendo presa injustamente e em nome de sua liberdade foi mobilizada a campanha nacional “Libertem Angela Davis”. O que ocorreu após 18 meses de cárcere. É professora, ativista e foi candidata duas vezes à Vice-Presidência da Casa Branca, muito antes do voto em Barack Obama ser cool

É inquietante que o livro fundamental de Angela Davis, ícone do feminisno negro, só tenha sido traduzido agora para o português

Através de escrita combativa e contundente, Davis mostra que “o que era reivindicado como um ‘direito’ para as mulheres privilegiadas (os direitos reprodutivos) veio a ser interpretado como um ‘dever’ para as mulheres pobres”. Desde o fim da escravidão, as mulheres de grupos minoritários vinham sendo esterilizadas sem consentimento nos EUA. Até o ano de 1976, 24% das indígenas haviam sido privadas do direito à reprodução em hospitais públicos. A ausência de política para a autonomia feminina era a política em si. 

É esta mesma política nefasta que dados do IBGE revelam no Brasil, 40 anos depois do debate colocado nos Estados Unidos: 55% das mulheres que se submetem à interrupção da gravidez são internadas com complicações; todos os dias, quatro mulheres morrem em consequência do aborto — foram, de janeiro a setembro de 2016, 1.215 casos, segundo o Ministério da Saúde.

Qual a cor destas mulheres sobre quem essas estatísticas subestimadas e imprecisas falam? Qual a classe social das mulheres cujas vidas são decididas nas mesas de cirurgia das clínicas clandestinas? 

Não existe democracia de fato enquanto o que segue “incompleto” na revolução silenciosa for gigantesco. O “estágio precário” do feminismo no Brasil não é menos que um problema para a democracia brasileira. E “democracia é simplesmente algo que você deve fazer todos os dias, como escovar o dentes”. Ou descobrimos nossas motocicletas roxas e saímos pilotando por aí, ou o Brasil seguirá sendo um país de banguelas.

Quem escreveu esse texto

Antonia Pellegrino

Roteirista, é curadora do blog #AgoraéQueSãoElas, hospedado no site da Folha de S.Paulo.